Os mitos também se abatem

Se o mito de que não podemos crescer nem convergir na zona euro tiver o mesmo destino que teve o seu primo austeritário, torna-se agora manifesto para onde devem ser dirigidos os nossos recursos intelectuais e políticos, sem perda de tempo: para o debate sobre a reforma do euro e da União Europeia.

Nesta semana morreu um mito. E há outro que se lhe pode seguir.

O mito que morreu é o de que Portugal governado à esquerda seria necessariamente um país de contas descontroladas. A certidão de óbito, para efeitos mediáticos, pode ter sido a saída do procedimento por défice excessivo, mas mais importante do que atestar o óbito é conhecer as causas da vida e da morte do dito mito. Elas remontam ao início da década, e ao debate entre keynesianos e austeritários na zona euro.

Os austeritários defenderam para a zona euro três coisas: que o estímulo dado pelos estados às economias após a crise de 2008 deveria ser retirado o mais depressa possível; que a zona euro não precisava de mecanismos de correção para os chamados “choques assimétricos” entre centro e periferia; e que, para países como Portugal, a cura para a crise estaria no corte dos “custos unitários do trabalho” (para ganhar competitividade) e na diminuição das despesas do estado (para ganhar “credibilidade” junto dos mercados).

É hoje claro que os austeritários falharam em todas estas prescrições. Os estímulos à economia foram retirados demasiado cedo e de forma demasiado brutal, levando-nos à recessão. A zona euro só começou a dar a volta à crise quando Mario Draghi inventou políticas monetárias que, entre outras coisas, permitissem baixar as taxas de juro de todos os países da zona euro. E em Portugal, onde o governo Passos/Portas quis ir “mais longe do que a troika”, e mais cedo também, dando prioridade a um choque precoce de austeridade, fomos lançados numa espiral recessiva de que só a acalmia na zona euro e as sentenças do Tribunal Constitucional começaram a retirar-nos.

O que se passou com a mudança para um governo de convergência à esquerda foi mais ou menos o contrário. A direita aceitava reverter algumas das medidas de austeridade, mas só lá mais para a frente e apenas depois de mais um corte nas pensões. A esquerda queria dar prioridade à reversão da austeridade. Contra os avisos dos austeritários, que proclamavam que as reversões demasiado rápidas e precoces nos levariam a afastar-nos das metas de défice, o país acertou pela primeira vez nas metas do défice e até as superou. Contra os avisos de que a subida do salário mínimo faria aumentar o desemprego, o desemprego diminuiu em Portugal a um ritmo maior do que no resto da zona euro. Ninguém duvida da sinceridade com que muitos políticos e economistas acreditaram na austeridade, mas o debate intelectual sobre a crise da zona euro — que, com os seus erros, provocou tanto sofrimento social desnecessário, injustificado e desproporcional — está encerrado. Só quando as políticas implementadas começaram a inclinar-se para um enquadramento keynesiano, primeiro no euro e depois em Portugal, as coisas começaram a melhorar.

E agora? Com Portugal e outros países periféricos a crescer acima da média da União Europeia, há outro mito que pode estar ferido de morte: o de que não podemos crescer nem convergir dentro da zona euro. Sejamos pacientes: no caderno do deve-e-haver desde a criação da zona euro, Portugal passou praticamente o tempo todo estagnado ou a divergir do resto da UE. Há por isso razões mais do que fundadas para se ser crítico da arquitetura da zona euro e das políticas que a UE tem seguido. Mas os últimos dados sobre a economia portuguesa sugerem que esses obstáculos à coesão e à convergência na UE são essencialmente políticos. Com as políticas certas, dentro e fora do país, Portugal pode desenvolver-se e a zona euro tornar-se menos desigual.

Se o mito de que não podemos crescer nem convergir na zona euro tiver o mesmo destino que teve o seu primo austeritário, torna-se agora manifesto para onde devem ser dirigidos os nossos recursos intelectuais e políticos, sem perda de tempo: para o debate sobre a reforma do euro e da União Europeia.

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