James Ferraro às voltas com o capitalismo

Elevou a arte o muzak e outros detritos do capitalismo, apontando as contradições da vida moderna. James Ferraro junta-se aos cúmplices Spencer Clark e Ducktails na sexta e no sábado, no Porto e em Lisboa.

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Algures em meados da década de 2000, James Ferraro, Spencer Clark e Matthew Mondanile, três norte-americanos em Berlim, tornaram-se amigos. Nessa altura, Ferraro e Clark formavam os The Skaters, referência fundamental da transição do underground americano, até então enamorado do noise, para novas paragens. Os Skaters eram noise, mas também criadores de cosmogonias conjuradas por sintetizadores baratos e cânticos xamânicos sem filiação religiosa – a sua forma de ruído aproximava-se de uma new age de baixa fidelidade. Nessa estadia berlinense, Matthew Mondanile assistiu de perto à microindústria dos Skaters, que editavam mil e um discos em cassete ou em CDs gravados em casa.

Mondanile levaria essas lições para os Estados Unidos. Fundaria Ducktails, projecto a solo que se tornaria banda – das trips de teclados passaria às canções aprumadas –, e os Real Estate, que virariam gigantes indie (saiu da banda em 2016). Os Skaters, esses, chegariam ao fim, abrindo caminho às carreiras a solo de Spencer Clark e James Ferraro. Clark levou mais longe a exploração esotérica do som, imaginando selvas e paraísos exóticos; Ferraro percorreu vários caminhos até ao álbum-revolução Far Side Virtual. Ducktails, James Ferraro e Spencer Clark (enquanto Typhonian Highlife) juntaram-se este mês para uma digressão europeia que passa sexta-feira pelo Passos Manuel (Porto) e no sábado pela Galeria Zé dos Bois (Lisboa).

Em Far Side Virtual, de 2011, James Ferraro deixou as gravações roufenhas e mergulhou na claridade excessiva dos sons corporativos: dos anúncios à música de elevador; da bolha Starbucks aos paraísos artificiais do Dubai e outras grandes cidades; da utopia encapsulada nos três segundos de um toque de telemóvel aos presentes que cantam do pós-capitalismo. Far Side Virtual inspirou uma multidão de produtores de quarto (protagonistas de tendências consumidas online, como o vaporwave). Sublimando o muzak, Ferraro parecia louvar e criticar, ao mesmo tempo, o capitalismo moderno e as suas possibilidades e contradições.

Na altura, em entrevista ao Ípsilon, brincou: “A sequela de Far Side Virtual vai ser um filme da Pixar que podes descarregar para o teu iPhone.” Não foi. Entre outras aventuras, perverteu as formas dominantes da actual música americana, como o hip-hop, o R&B e o trap, e compôs música para o sistema telefónico e o elevador do Museum of Modern Art (MoMA) PS1, em Nova Iorque.

Em 2016, lançou aquela que pode ser vista como a sequela de Far Side Virtual. Human Story 3 leva a música corporativa aos redutos da música clássica – Ferraro cruza coros digitais com coros de carne e osso, engendra discursos automáticos gerados por máquinas (Starbucks collapse, IKEA, GPS, global market), faz peças orquestrais com instrumentos sintetizados. Se Far Side Virtual era um disco de observação do capitalismo do século XXI, Human Story 3 olha para a frente. “Vimos a invenção do latte, do ioga, da computação em rede, vimo-nos a nós próprios numa enorme quantidade de lugares não naturais e simulacros comerciais, a crise e as conquistas dos humanos num crepúsculo perpétuo. Qual é o próximo passo da história do século XXI?”, diz a sinopse do disco.

Ferraro propõe-se a fazer “arte cívica”. Não contesta abertamente a estrutura, mas alerta para os seus perigos – como o hiperindividualismo traduzido num mundo de selfies. Não é contra a tecnologia, mas pergunta se estamos a fazer o que devemos com ela. “Não vejo como algo de mau que a cultura esteja a ser engolida, comercializada e mercantilizada. A parte assustadora da dinâmica de mercantilização está na forma como está a ser aplicada”, afirmou à Ssense. “Acredito que a arte tem como objectivo criar pedaços de realidade temporária e que as suas estéticas trazem novas ideias ao mundo.”

O sublime escondido

Filho de um DJ de rádio e músico de metal e de uma cantora folk, James Ferraro ouviu todo o tipo de música enquanto crescia, entre Nova Iorque e Los Angeles – cidades cujos lados negros inspiram álbuns recentes, NYC, Hell 3:00 AM (2013) e Skid Row (2015). Aprendeu a fazer colagens de sons com um gravador portátil, juntando palavras em histórias fictícias. Essa vontade de inventar mundos através do som levou-o a colaborar com Spencer Clark, que encontrou em San Diego, onde viveu. “Tinha 18 anos e algo fez clique. Tivemos uma conversa que acabou connosco a colaborar em artes visuais, pinturas e outras coisas. Depois começámos a fazer música e gravámos durante um ano”, contou ao Red Bull Music Academy Daily. Desse ano de gravações saiu uma infinidade de discos, hoje objectos de coleccionador, feitos e editados de forma artesanal.

Em 2008, os Skaters despedem-se e James Ferraro inicia a solo um novo fluxo de discos, todos eles a explorar facetas diferentes da bizarria humana e detritos do capitalismo – da cientologia na ascese de Clear (2009) ao glorioso lixo rock de Night Dolls With Hair Spray (2010). Em todas as suas obras, parece interessado em exagerar e sublinhar aspectos da banalidade da existência, elevando elementos da realidade a experiências psicadélicas.

Em 2009, o jornalista David Keenan cunhava o termo hypnagogic pop para designar vários projectos que trabalhavam a memória e a nostalgia. Keenan punha na dianteira do novo género Ferraro, Spencer Clark e Ducktails, os três projectos que voltam a juntar-se no Porto e em Lisboa. Nesse artigo da revista britânica Wire, Ferraro explicava o que queria fazer com a sua música: “Penso que há aspectos da cultura humana que algumas pessoas vêem como pouco importantes, mas que operam num sistema profundo de simbolismo antigo e arquétipos humanos. Hard Rock Cafes, clubes de strip, ginásios, celebridades, etc., são todos bons exemplos disto, de templos de beira de estrada. Os meus álbuns são como downloads desse corpo de informação.”

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