Pequenas lembranças proto-ortográficas

Qualquer reforma, para ser consequente, deveria atender a uma lógica harmónica e eminentemente ortográfica.

Enquanto a Academia das Ciências anda às voltas com as incongruências do acordo ortográfico de 1990 (AO90), procurando emendas que o salvem, é curioso e útil lembrar a Base VI do acordo de 1945 (tinha 51 bases, contra 21 do AO90), porque aí residem muitas das polémicas actuais. Tem a ver com o uso e valor das ditas consoantes mudas, bem como da sua utilidade e justificação. Dizia ela: “O c gutural das sequências interiores cc (segundo c sibilante), e ct, e o p das sequências interiores pc (c sibilante), e pt, ora se eliminam ora se conservam.” E isto não era facultativo, era clara a manutenção ou a eliminação, bem como os respectivos fundamentos então alegados.

O primeiro ponto era pacífico, pois não influía na fala. Dizia: “Eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos, quer na pronúncia portuguesa, quer na brasileira, e em que não possuem qualquer valor particular”, e onde antes se escrevia aflicto, auctor, funcção ou victória passava a escrever-se aflito, autor, função ou vitória; ou, caso do p, absorpção, assumpto, captivo, excerpto, prompto, redempção passavam a escrever-se absorção, assunto, cativo, excerto, pronto, redenção.

Já o segundo ponto era questionável, pois dizia que se conservavam “não apenas nos casos em que são invariavelmente proferidos” (compacto, convicção, ficção, adepto, etc) “mas também naqueles em que só se proferem em Portugal ou só no Brasil, quer geral quer restritamente”. E dava como exemplos, entre outros, cacto (“c interior geralmente proferido no Brasil e mudo em Portugal”), contacto, dicção, facto (“c geralmente proferido em Portugal e mudo no Brasil”), tecto (“c por vezes proferido no Brasil”) ou peremptório (“p interior geralmente proferido no Brasil mas predominantemente mudo em Portugal”). Resultado: como o Brasil já escrevia contato, dição, fato, teto, tal como cacto ou peremptório, assim continuou e continua, ainda hoje. Com o AO90, unificou-se a grafia? Vejamos. No Brasil escreve-se contato, dição, fato, teto, cacto, peremptório; e em Portugal o AO90 diz que é contacto, dicção, facto, teto, cato, perentório. Em seis palavras, onde antes havia duas iguais, agora há... só uma! É o que faz a“unificação”...

O terceiro ponto era ainda menos suportável pelo Brasil, pois generalizava-se a regra quando na prática já havia duas regras de escrita claramente demarcadas em Portugal e no Brasil. Dizia-se, pois, que as ditas consoantes mudas “conservam-se, após as vogais a, e e o, nos casos em que não é invariável o seu valor fonético e ocorrem em seu favor outras razões, como a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas e a possibilidade de, num dos dois países, exercerem influência no timbre das referidas vogais.” Assim se sancionavam (e, bem, no caso de Portugal) acção, activo, actor, afectuoso, arquitectura, colecção, colectivo, dialectal, etc, sem cuidar que no Brasil já se escrevia, há muito, ação, ativo, ator, afetuoso, arquitetura, coleção, coletivo, dialetal, etc. Se neste ponto se deixasse claro que as ditas consoantes se mantinham nos países onde exercessem influência no timbre das referidas vogais, e não generalizando a sua obrigatoridade (que o Brasil rejeitou, por decreto presidencial, em 1955, dez anos após assinar o acordo ortográfico de 1945), talvez não tivesse surgido o “monstro” ortográfico dos anos 80-90, impondo a Portugal, contra-natura, aquilo que só fazia (e ainda fará) sentido vigorar no Brasil.

Por fim, um ponto importantíssimo, o quarto: “Conservam-se quando, sendo embora mudos, ocorrem em formas que devem harmonizar-se gràficamente com formas afins em que um c ou um p se mantêm.” Exemplos? Acto, onde o c não influi na fonética, lendo-se “ato”; e acção, onde a ausência do c levaria a ler, não “àção” mas “âção”. Esta regra, que faz todo o sentido quando se olha para uma mesma família de palavras e não para cada palavra em separado, obriga a uma harmonia lógica, harmonia essa que o AO90 não só destrói como o Brasil, por decisão própria (e decerto irreversível), já destruiu há muito tempo, validando em simultâneo, por exemplo, com c e sem c, fato e factual, espetáculo e espectador, isto na escrita como na fala. Qualquer reforma, para ser consequente, deveria atender a esta lógica harmónica e eminentemente ortográfica.

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