O Portugal dos exilados, refractários e desertores sobe ao palco

Peça de Ricardo Correia é uma colagem das memórias dos emigrantes que saíram do país entre 1961 e 1974. Esta quinta-feira em Coimbra, no Teatro Académico de Gil Vicente.

Fotogaleria
CARLOS GOMES
Fotogaleria
CARLOS GOMES
Fotogaleria
CARLOS GOMES
Fotogaleria
CARLOS GOMES
Fotogaleria
CARLOS GOMES
Fotogaleria
CARLOS GOMES

A mobília em palco avisa ao que vamos. Uma antiga e pesada secretária de metal, uma máquina de escrever, os microfones clássicos, um velho cadeirão e o guarda-roupa remetem para meados do século XX. Outros elementos do cenário, como um vinil de Carlos Paredes, José Afonso e Luiz Goes, ajudam a situar melhor no tempo. As histórias de resistência que se vão ouvir na hora seguinte passam esta quinta-feira pelo Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), em Coimbra, e fazem parte da peça O Meu País é o Que o Mar Não Quer #Exílios 61/74, encenada por Ricardo Correia.

A co-produção da Casa da Esquina com o TAGV quer mostrar o “mosaico”, a “polifonia de vozes” formada pelas histórias de várias pessoas que saíram do país nesses anos de estertor do Estado Novo, diz o encenador ao PÚBLICO. “É difícil construíres a identidade portuguesa com um gesto que é visto com um gesto cobarde." “Mas que não foi”, ressalva, “porque muita desta gente esteve cá a lutar”.

O processo de criação da peça envolveu entrevistar pessoas que passaram por essa experiência. Há “grandes narrativas” sobre capítulos históricos como a Guerra Colonial ou o 25 de Abril, mas Ricardo Correia considera que há um certo “esquecimento sobre os anónimos que fizeram um acto de fuga e de luta, que era mal compreendido”. #Exílios 61/74 é uma colagem desses testemunhos de exilados, refractários e desertores.

Ao longo da peça há um coro que vai “informando, narrando e provocando”, que faz a “gestão das micronarrativas e das experiências individuais”. O espectáculo procura dar voz a pessoas “que lutaram contra o regime fascista” e mostrar “como é que pensaram, alimentaram e fizeram a deserção ou o salto”. As referências culturais da época também lá estão: desde a censura aos filmes de Antonioni ou Eisenstein à Rádio Portugal Livre, que começou a emitir a partir de Bucareste, passando pela Livraria Barata, em Lisboa, que vendia livros proibidos pelo regime.

Uma boneca russa

Não é a primeira vez que Ricardo Correia se debruça sobre a questão da emigração. Em  2012, o director artístico da Casa da Esquina tinha já partido do poema homónimo de Ruy Belo para construir O Meu País é o que o Mar Não Quer, uma peça sobre a mais recente vaga de saídas do país. Estávamos então nos anos da troika e no último pico da emigração. A preparação desse espectáculo, embora sobre uma geração mais jovem, foi semelhante: implicou recolher testemunhos de pessoas que estavam a viver fora do país – no caso, em Londres – e transpor as suas histórias para palco.

Em O Meu País é o que o Mar Não Quer, que esteve em exibição entre 2012 e 2015, Ricardo Correia era, além do encenador, também o único intérprete em palco. Na interacção com a plateia chamava uma ou duas pessoas do público que tivessem passado por experiências de emigração: “Em mais de 50 espectáculos, só por uma vez não havia ninguém."

Numa apresentação da peça em Lisboa estavam na plateia o coreógrafo Rui Horta e a crítica e professora de teatro Eugénia Vasques, que fizeram parte de uma vaga anterior de emigração e que deixaram ali os seus testemunhos. Este foi o ponto de partida para a peça que vai agora a palco, diz Ricardo Correia.

#Exílios 61/74 acaba por ser uma espécie de “boneca russa": "Vais desencaixando e há sempre coisas lá dentro." O movimento de saída em massa do país nesses anos ajuda também a compreender os que partiram durante os anos mais recentes da crise. “É um ciclo”, aponta Ricardo Correia. Mas um ciclo fundamental para compreender a identidade nacional. 

Sugerir correcção
Comentar