Passa, passarinho passa

Será que passarinhos vão para o céu? Não haveria novidade alguma para seres que fazem de sua vida, o voo, e de sua morada, o céu

Foto
Slava Bowman/Unsplash

Um carro emprestado, uma cidade, um estado e, subitamente, um patamar imprestável. A mediocridade esquecida e implícita de nossas potestades veio à tona, num aparente evento atómico, resultado atónito de espírito. Espírito que me seguiu durante o dia, um espírito que voa, mas já não sei se tão liberto quanto outrora, o fora. Naquela mesma estrada que a rotina me dedicou, uma mensagem diferente: passarinho passa, passa rindo e findo.

Um filhote de bem-te-vi, preso na fresta, entre pedras e paralelepípedos de uma estrada que não passou de escada daquele ser ao céu. Será que passarinhos vão para o céu? Não haveria novidade alguma para seres que fazem de sua vida, o voo, e de sua morada, o céu. Sair do céu para se chegar ao mesmo céu? Pois bem, este passarinho fez o caminho inverso, quando começou os seus primeiros voos e, de pronto, sua vida, foi forçado a arremeter. Aquilo que seria apenas sua frenagem, suas finas patinhas agarraram-se à terra: seria, assim, a Terra, o céu dos pássaros? Mas que há de paraíso nisso?

E o homem? Esse ser medíocre, vergonha pura à Criação, se enxerga não como semelhante ao Criador, mas como sua própria imagem. Ele mesmo, vive a vida querendo voar, querendo, ao morrer, ir para o céu. Vive no pecado, pretendendo morrer na salvação. Não anseia a Terra e por isso a despreza. Destrói, para depois nela construir, sua estrada de uma aparente civilização, aparente pois esmaga toda e qualquer Criação. Faz como fez a esse pássaro, uma sepultura forçada a toda e qualquer criatura, para tentar chegar um dia, onde aquele pássaro e tantos outros, passam a vida: o céu. Gostaria de ser como pássaro, que faz da vida um grande voo e morada o próprio céu. Na minha condição de homem, fazer da vida um grande trajeto a pé, e da Terra, minha morada feliz, sem querer um céu que sequer consigo provar. É preciso transformar a Terra em céu, o voo em vida a pé: este é o trajeto de um peregrino feliz.

Entretanto, ao homem não basta destruir seu céu, é preciso também a fim de se saciar, construir estradas e forçar a todo ser, o seu destino final. Aquela estrada que seguia até meu destino final, morreu ali onde agarrada ficou, “a garra do” pássaro na fresta da insensatez humana. Espantado, preso para além de uma gaiola, viu o céu e sua vida de relance, enquanto a sorte lhe segurava entre um carro e outro. Um desses carros era o meu. Passei, desviei, freei, voltei, mas já era tarde. Eu bem que te vi, bem-te-vi, mas quando retornei para resgatar sua liberdade, isto é, seu voo e seu céu, já lhe haviam esmagado. Não lhe viram, mas passou, passarinho, rapidinho a sua dor. Seu céu é casa, sua vida é voo, e agora, poderá, num rasante, alegrar para sempre a eternidade, liberto de toda opressão que esmaga, agarra, espreme, de toda pressão que sepulta. Liberto estás da estrada que estraga a humanidade. Saiba, ao fim, que sua vida valeu à pena, pois sua pena é lembrança de vida. Até onde iremos sem bem viver, sem bem ver, sem bem-te-vi?

Sugerir correcção
Comentar