Primárias do PSOE assinalam o fim da “era Felipe González”

Pedro Sánchez teve a sua revanche e volta a ser secretário-geral, mas com muito mais poder do que antes. A sua estratégia é nebulosa e assente no “confronto total” com Mariano Rajoy.

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Sérgio Perez/Reuters

A vitória de Pedro Sánchez nas eleições primárias do PSOE não muda apenas a postura do partido mas o tabuleiro político espanhol. Sánchez foi eleito com 50,21% dos votos, contra Susana Diáz (39,94) e Patxi López (9,85), numa eleição em que participaram 80% dos filiados. A surpresa não foi o triunfo do antigo secretário-geral, que era dado como favorito nas sondagens, mas os números. Díaz, que representava o “aparelho”, sofreu uma derrota humilhante. Sánchez recupera o antigo cargo com mais poder. É também o fim da “era de Felipe González”.

Os resultados exprimem em larga medida uma revolta das bases contra o “aparelho” e a atracção de uma viragem à esquerda. A palavra de ordem de Sánchez em 2016, o “não é não”, contra Rajoy, revelou-se mobilizadora e foi amplificada pela actual vaga de escândalos de corrupção que afecta sobretudo o Partido Popular (PP). Sánchez foi forçado a demitir-se no dia 1 de Outubro, pela sua insistência no “não é não” que se arriscava a precipitar “terceiras eleições” que seriam catastróficas para o PSOE. Usou agora, e com sucesso, a arma da “vitimização”. Também terá sido eficaz o apelo a “um novo PS”, em que as bases teriam um papel “soberano”.

Sánchez venceu em quase toda a Espanha, com destaque para as federações “plurinacionais”, onde obteve os melhores resultados. Susana Díaz apenas ganhou na Andaluzia, mas perdendo tereno para Sánchez: teve menos votos do que “avales”, os patrocínios das candidaturas pelos militantes. López dominou no País Basco. Segundo as primeiras análises, houve uma transferência de votos de Díaz para Sánchez. Este contou com o “voto jovem” e com uma campanha muito mais dinâmica nas últimas semanas.

Estas primárias marcam o fim da “era dos históricos”, em que as grandes figuras do “velho socialismo”, a começar por Felipe González, exerciam um papel quase tutelar. Quase todos eles, de Alfonso Guerra a José Luis Zapatero, estiveram activamente ao lado de Díaz.

Rajoy e basismo

A primeira mudança anunciada será o modelo de oposição, que passa a ser o “confronto total” com o PP e com Rajoy. Sánchez promete fazer da “demissão de Rajoy” o primeiro eixo da sua política. Vai endurecer a oposição, não fará quaisquer acordos legislativos casuísticos, e exigirá a sua demissão no parlamento. Denunciará a corrupção e bater-se-á pela revogação de leis como a reforma laboral.

Mas não diz como derrubará Rajoy. Fala em iniciativas comuns com “forças progressistas”. Rajoy avisou ontem o PSOE de que não é sua intenção dissolver o Parlamento. “Como conseguirá o PSOE ser capaz de encabeçar novamente coligações de governo que lhe permitam recuperar a Moncloa [Presidência do Governo]?”— interroga-se o politólogo Pablo Simón.

Para já, Sánchez tem um desafio: a moção de censura ao governo apresentada pelo Podemos. A moção, mais do que contra Rajoy, destina-se a abrir uma “brecha no PSOE”, dizem os analistas. Pablo Iglesias foi explícito a este respeito. Sánchez garantiu que a não apoiaria. Ontem Iglesias desafiou o PSOE a apresentar a sua própria moção para que o Podemos retire a sua.

A segunda mudança é relativa ao funcionamento do partido, cuja lógica sofreria uma inflexão radical. Propõe-se organizar consultas obrigatórias aos militantes para ratificar os pactos pós-eleitorais e outras decisões. Quer cercear o poder dos “barões” e fortalecer a direcção federal. Susana Díaz opôs-se ao modelo de partido-assembleia, defendendo o modelo representativo.

Que se segue?

Os críticos de Sánchez apontam o risco de o PSOE esvaziar as estruturas intermédias e reduzir-se a um secretário-geral poderoso que dialoga directamente com os militantes. Seria um “modelo cesarista” que inquieta os líderes regionais. O PSOE um partido bastante descentralizado embora afectado por um forte clientelismo.

Resta ver como se transformarão as relações de força entre o secretário-geral e os “barões” territoriais. A primeira clarificação terá lugar no congresso federal de 16-18 de Junho e prosseguirá, a seguir, nos congressos das federações.

O El País sempre foi crítico de Sánchez e próximo dos “históricos”. Num editorial qualificava ontem a vitória de Sánchez como o “Brexit do PSOE”, um facto que se insere no contexto da crise da democracia representativa, (...) com demagogia, meias ou falsas verdades e promessas impossíveis de cumprir”. O El Mundo prevenia contra “a tentação populista”. Outros sublinham a bofetada das bases nos dirigentes.

Certo é que estas primárias mudam o PSOE. Fecharam um ciclo. “Com Sánchez à frente do PSOE muda o tabuleiro político com uma profundidade que é hoje inimaginável”, escreve no Republica de las Ideas o colunista Fernando González Urbaneja. Prepara-se o partido para se lançar numa lógica de radicalização que o tornaria “irrelevante” como o PS francês? Ou vai reconquistar ao Podemos a hegemonia da esquerda? Também o PP e o Cidadãos deverão repensar as suas estratégias.

As primárias decorreram sob o signo do confronto entre pessoas e clãs. Observa Pablo Simón: “Ao fim e ao cabo, o grande risco do PSOE é que o seu escasso ânimo de unidade acabe por converter este partido numa formação mais preocupada com os assaltos organizativos do que em procurar um projecto e um espaço numa Espanha que, goste-se ou não, já não é a do bipartidarismo.”

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