Queixas sobre serviços que ninguém sabe como assinou chegam ao Parlamento

As reclamações de clientes de telecomunicações que se sentem burlados circulam há anos na Internet. No final de Março, chegou à Assembleia da República uma petição que pede legislação específica.

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Muitas das histórias narradas dizem respeito a assinaturas feitas inadvertidamente por crianças ou idosos asm adriano miranda

Quando olhou para a factura, Inês Jardim viu que a operadora de comunicações lhe estava a cobrar cerca de 20 euros a mais. O montante dizia respeito a um serviço de conteúdos para telemóveis, que custava 3,99 euros por semana. A subscrição, conta Inês Jardim ao PÚBLICO, foi feita pela filha, que tinha então 11 anos e que terá assinado involuntariamente aquele serviço, prestado pela Mobibox, uma marca de conteúdos para telemóveis.

A Mobibox enviou uma mensagem a avisar que o serviço tinha sido subscrito. Mas Inês Jardim, que diz sentir-se burlada, garante que a filha nem deu conta. “Os miúdos hoje em dia quase nem lêem SMS, usam outras coisas, como o Instagram, e recebem uma mensagem com uma linguagem que mal conhecem...” Quando a mensagem é recebida, já estão facturados os primeiros quatro euros, que acabarão por ser cobrados pela operadora ao cliente. A cobrança é recorrente, até que o cliente consiga desactivar o serviço. No caso da Mobibox, a desactivação pode ser feita online, numa página específica, ou ligando para o 707 450 201. A chamada é paga.

A história de Inês Jardim está muito longe de ser caso único. Nos fóruns das operadoras de telecomunicações (tanto no da Vodafone, como nos da Meo e Nos), e em sites de reclamações como o Portal da Queixa, multiplicam-se mensagens, publicadas ao longo de vários anos, de utilizadores que dizem ter subscrito serviços da Mobibox e de outras empresas semelhantes – sempre sem se aperceberem de que o tinham feito. Muitas das histórias narradas dizem respeito a assinaturas feitas inadvertidamente por crianças ou idosos. Várias pessoas garantem que clicaram em imagens ou links que não indicavam que estavam a comprar um serviço pago. Também relatam dificuldades em cancelar as cobranças e queixam-se da falta de cooperação das operadoras. No Facebook, há um grupo para divulgar informação sobre o fenómeno.

Em Março, deu entrada no Parlamento uma petição com o título “Assalto através de telemóvel? Ou crime de burla através do telemóvel”. No documento, que está desde o final de Abril na Comissão de Economia, um homem diz ter sido “assaltado ou burlado” e queixa-se de lhe terem sido cobrados mais do que uma vez conteúdos da Mobibox, os quais garante não ter subscrito.

A petição apela à criação de legislação “que penalize e ponha cobro a esta verdadeira roubalheira”. Mas só depois de o documento ser analisado e haver um relatório é que o tema poderá eventualmente ser apresentado aos grupos parlamentares para uma possível iniciativa legislativa.

Zona cinzenta

Serviços como o da Mobibox são aquilo que em termos técnicos se designa por wap billing. É um método de pagamento que faz com que o serviço seja cobrado através da factura da empresa de telecomunicações, sem ser necessário ao utilizador dar os dados de um cartão bancário – ou quaisquer outros.  Estes sistemas identificam o número de telemóvel e é quanto basta para que a cobrança possa ser feita. Experiências do PÚBLICO mostraram que os botões que levam à assinatura dos serviços de wap billing estão muitas vezes dissimulados e os utilizadores julgam, por exemplo, estar a abrir uma imagem, a fazer uma pesquisa ou a fechar um anúncio publicitário. Muitas empresas prestam este tipo de serviços através de várias marcas: nomes como ZigZagFone, Gamifive e WixaWin são motivo de queixas frequentes online.

Ao contrário dos serviços de valor acrescentado baseados no envio de SMS ou MMS, os de wap billing têm um perfil muito mais difuso do ponto de vista da supervisão. É que enquanto os primeiros têm um regime próprio, definido num decreto-lei de Maio de 99, os segundos são considerados serviços da sociedade da informação, esclareceu ao PÚBLICO fonte oficial da Anacom.

A qualificação é suficientemente lata para que lhes sejam aplicáveis quer o regime jurídico dos serviços da sociedade da informação (o decreto-lei de 2004 que veio transpor a directiva sobre comércio electrónico), quer a legislação da contratação à distância ou a Lei de Defesa do Consumidor, adiantou a mesma fonte. Assim, enquanto as empresas que prestam os serviços de valor acrescentado estão obrigadas a registar-se junto da Anacom (e a submeter-se às suas regras e eventuais sanções), a actuação das empresas de wap billing cai sob a alçada da Direcção-geral do Consumidor ou da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), se houver queixas ou litígios, diz o regulador das comunicações.

Como não são serviços de valor acrescentado, nem serviços de comunicações electrónicas, também não lhes é aplicável a Lei das Comunicações Electrónicas, e em particular as obrigações de informação pré-contratual – ou seja, as informações que as empresas estão obrigadas a prestar antes que se possa considerar que um cliente subscreveu determinado serviço.

Na prática (e pela forma como, na esmagadora maioria das vezes, estes serviços são subscritos inadvertidamente pelos consumidores) a percepção com que os clientes ficam é a de que os operadores de telecomunicações são em parte responsáveis por aquilo que consideram uma burla. Isto porque os operadores permitem “que terceiros cobrem [as subscrições] sem qualquer tipo de autorização do cliente” e que utilizem “a conta do cliente como se um cartão de crédito sem PIN se tratasse”, como se queixou um utilizador ao PÚBLICO.

Pouca transparência

O PÚBLICO contactou a Nos, a Vodafone e a Meo. Só esta respondeu, afirmando que “os produtos implementados seguem um conjunto de regras que visam salvaguardar os clientes, nomeadamente garantir que o fluxo de subscrição é claro e explícito, com a apresentação clara e inequívoca dos preços praticados e o envio de um SMS no acto da subscrição”. A Meo acrescentou ainda que os clientes podem “inibir e/ou gerir a subscrição deste tipo de serviços”. A Vodafone e a Nos não quiseram prestar esclarecimentos.

“As operadoras não têm interesse em falar sobre este tema, até porque têm um conflito de interesses, porque parte do dinheiro que cobram aos clientes reverte para elas”, observou ao PÚBLICO um advogado especialista em telecomunicações. O dinheiro que as operadoras fazem com estes serviços foi uma das perguntas feitas pelo PÚBLICO e que ficou por responder. “Assumir que têm muitas queixas sobre estes serviços seria assumirem que os parceiros têm condutas desadequadas”, acrescentou o advogado.

Chegar ao contacto das empresas por trás dos serviços de wap billing pode não ser uma tarefa simples. No caso da Mobibox, implicou seguir o caminho deixado pelo registo do endereço Mobibox.pt.

Aquele endereço foi registado por uma empresa chamada GBRANDB - Agência de Comunicação e Publicidade. Esta empresa (que indica no seu site ter recebido dinheiro público ao abrigo do programa QREN) foi criada em 2013, tendo como gerentes Rui Cordeiro e Luís Campos. Entre os clientes listados no site estão a Coca-Cola, a Chevrolet e a Vodafone.

A GBRANDB tem hoje sede num centro de empresas em Álcacer do Sal. Mas a primeira sede era num edifício de escritórios da zona de Alcântara, em Lisboa. Foi neste edifício – onde funciona uma empresa chamada Go4Mobility, que detém parte do capital da GBRANDB – que o PÚBLICO tentou falar com Rui Cordeiro (a Go4Mobility é também motivo de reclamações em vários fóruns, por cobrar o mesmo género de serviços que a Mobibox; algumas das queixas remontam a 2010). O PÚBLICO não conseguiu passar da recepção, onde uma funcionária indicou que Rui Cordeiro não estava disponível e que as questões deveriam ser feitas por email. Apesar da insistência, as respostas nunca chegaram.

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