Vamos falar de poupança? Como mudou o paradigma em 40 anos

Quando Manuela e Gregório eram mais novos, não havia cartões multibanco, nem empréstimos bancários. Em 1972, a taxa de poupança das famílias chegou a ultrapassar os 30,5%; no final de 2016, situava-se em 4,1%. Hoje, nas gerações mais novas, há quem prefira viver o dia-a-dia, ter “experiências”.

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No sofá azul-escuro colocado a um canto da sala, era habitual fingir que fazia a barba ao seu tio, o poeta Fernando Pessoa, limpando a espuma com uma faca de papel que ainda guarda como recordação. Vivia com ele e com os seus pais no 1.º andar, no n.º 16 da Rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, Lisboa ­- onde hoje funciona a Casa Fernando Pessoa. No fim do faz de conta, o tio (meio-irmão da sua mãe) dava-lhe sempre duas moedas de prata com as quais ela, Manuela Nogueira, hoje com 91 anos mas na época com apenas três ou quatro, ia a correr com a empregada comprar barras de chocolate à leitaria do bairro, do Sr. Trindade. Um episódio que poderá ter inspirado Fernando Pessoa a escrever este poema: “Come chocolates pequena / Come chocolates! / Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates/ Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria/  Come, pequena suja, come!/ Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!/ Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,/ Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.

A  família de Manuela Nogueira  não tinha grandes preocupações financeiras. Os pais — ele oficial do Exército, ela dona de casa e filha de diplomata — guardavam o dinheiro todo em casa, num cofre. Mais tarde, conseguiram comprar a casa com que sonhavam, com vista para o mar, no Estoril. Apesar de pertencer à alta burguesia, Manuela começou por viver em casas alugadas e nunca recebeu mesada. “Eram outros tempos. Não havia bancos, cheques nem cartões de crédito”, diz. Aos 21 anos casou-se e em 1953 alugou uma casa com o marido por 1500 escudos por mês (que corresponderia actualmente a 706 euros), onde vivem há 64 anos — comprou-a só após o 25 de Abril.

Bem diferente foi a vida de Gregório Pedro Marques, de 80 anos, hoje dono de um café em Lisboa. Nasceu numa família pobre que trabalhava no campo, em Alenquer, e, aos 10 anos, para ajudar a mãe, começou a trabalhar como guardador de burros, recebendo 30 escudos por mês (14,95 euros). Aos 17 anos foi para Lisboa trabalhar num restaurante, dormindo em casa do patrão. O salário que recebia ia-o guardando na mala de roupa que tinha no quarto. Mudou de emprego, casou-se, alugou um quarto no Beato, porque não havia dinheiro para mais. Em 1968 o casal partiu para Luanda, ele para trabalhar num restaurante e pastelaria; ela como funcionária do supermercado Pão de Açúcar, que abria portas naquele início da década de 70. 

Quando se deu a independência de Angola, tiveram de regressar, mas não conseguiram salvar as poupanças. “Não nos deixavam trazer nada. Ficou lá o meu carro e algum dinheiro”, recorda Gregório Pedro, que embarcou no avião cinco dias antes do 11 de Novembro de 1975, quando o então Presidente do MPLA e poucos dias depois primeiro Presidente de Angola, Agostinho Neto, proclamou a independência. “Fui dos últimos a virem, porque criámos uma comissão para tratar do regresso dos portugueses e eu fiquei a carregar os caixotes nos barcos.”  Em Lisboa, pediu a um amigo 240 contos (cerca de 33 mil euros) para conseguir o trespasse de um café na Damaia. Começou a ganhar algum dinheiro; passou a viver melhor. A mulher arranjou um novo emprego, outra vez no Pão de Açúcar, mas agora no de Alcântara, em Lisboa.

Apesar de vidas tão diferentes, Manuela Nogueira e Gregório Pedro Marques têm em comum terem crescido sem saber o que era o crédito bancário; terem casado sem lhes passar pela cabeça comprar casa; terem assistido a uma mudança brutal na forma como os descendentes vivem e encaram o dinheiro. “Dantes pensava-se no futuro, na educação dos filhos e em guardar para uma eventual doença, pois o Serviço Nacional de Saúde era bem diferente”, recorda Manuela. E acrescenta: “Agora, quando se tem gasta-se; e, se não se tem, pede-se ao banco.” Gregório Marques pensa o mesmo. “Hoje em dia, parece que as pessoas têm dinheiro para tudo” — o dono da pastelaria recorda ainda os tempos em que a sua mãe, para conseguir comprar peixe à varina, levava ovos para troca.

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Gregório Pedro Marques mantém o negócio que abriu no seu regresso de Luanda, em 1975: um café. Nunca teve cartão de crédito e o que conseguiu poupar, "não muito", diz, pagou a educação da filha nuno ferreira santos

Madalena França, de 38 anos e neta de Manuela Nogueira, tem dois créditos no banco — um para a casa e outro para o carro — e confirma a ideia da avó. “Hoje, de facto, têm-se outras preocupações além de poupar para casar e ter casa. Consegue-se ter tudo com mais facilidade, compra-se tudo a crédito.

Também a filha de Gregório Marques, Paula, de 53 anos, que recorreu ao banco para o crédito à habitação, assume a diferença: “Eu não sou como o meu pai, que se preocupou em amealhar. E não fico preocupada em guardar para a vida. Se me apetecer, gasto. É um dia de cada vez”, confessa. Admite, porém, que, nos últimos tempos, devido à idade, já começou a pensar um bocado mais no futuro.

Os números do Banco de Portugal e do Instituto Nacional de Estatística são a prova do que dizem: os portugueses estão a poupar cada vez menos. Em 1972, a taxa de poupança das famílias, em relação ao rendimento disponível, chegou a ultrapassar os 30,5%; mas foi descendo e no final de 2016 situava-se em 4,1%, ou seja, em cada 100 euros, só conseguiam poupar 4,1 euros.

A revolução chegou com o crédito e a adesão ao euro

A queda da poupança iniciou-se no final dos anos 80 e no início dos 90. Entre os especialistas, parece não haver dúvidas de que a adesão ao euro, a diminuição das taxas de juro e a facilidade de obtenção de crédito junto dos bancos foram decisivos para que os portugueses deixassem de pôr dinheiro de lado.

“Tal trajectória foi o resultado da liberalização financeira — que reduziu as restrições de acesso ao crédito”, lê-se no estudo Poupança em Portugal, feito pelo núcleo de investigação em políticas económicas da Universidade do Minho, em 2011. Os autores acrescentam que, “ao mesmo tempo, procedeu-se à estabilização nominal da economia portuguesa, com a redução das taxas de juro e da taxa de inflação”. Aliás, segundo o Boletim Mensal da Economia Portuguesa, de Novembro de 2014, do Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais do Ministério das Finanças e do Gabinete de Estratégia e Estudos do Ministério da Economia, “entre 1990 e 2000 as taxas de juro diminuíram 7 pontos percentuais e o stock de crédito concedido às famílias e às empresas aumentou 134%”.

Facilitado o recurso ao crédito — resultado da concorrência que se começou também a verificar entre bancos —, as famílias optaram por poupar menos, consumir mais e endividar-se. A poupança caiu de 24% em 1985 para 10% no final dos anos 90.

“A taxa de poupança das famílias portuguesas, que superava os 20% do rendimento disponível nos anos 80, caiu para metade com o processo de convergência para a adesão ao euro nos anos 90 e voltou a cair para metade nos dois últimos trimestres de 2015, com a posse do novo Governo”, acrescenta Susana Albuquerque, especialista em gestão financeira e secretária-geral da Associação de Instituições de Crédito Especializado (ASFAC), notando que, além de pouparem menos, as pessoas mudaram o seu comportamento: hoje, junta-se dinheiro para projectos a curto e médio prazo e não para garantir o futuro mais longínquo, como antigamente.

Era exactamente para prevenir os dias que viriam que Manuela Nogueira e o marido, Bento Murteira — que foi professor de Estatística de Cavaco Silva, Manuela Ferreira Leite, entre outros —, geriam com cuidado o dinheiro que ele recebia dos salários, em numerário, na CUF e no actual ISEG. “Ele dava-me uma parte para eu gerir a casa”, recorda Manuela, que ia ao colégio das filhas pagar a mensalidade com notas. “Lembro-me bem de ver envelopes nas gavetas, com dinheiro para a renda, etc.”, diz, por seu lado, Isabel França, de 69 anos, a mais velha das três filhas de Manuela. Ao contrário da mãe, já recebia mesada da família quando tinha 17 anos. “Os meus avós davam-me 20 escudos [oito euros] por mês.” Não tem memória de acumular muitas notas num mealheiro, mas sim de as gastar em “coisas para o enxoval, idas ao cinema e em roupa”.

Licenciou-se em Ciências Sociais e Políticas pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e o seu primeiro emprego foi dar aulas de História. Naquele ano de 1974, “era difícil encontrar vagas” e “por coincidência” a única escola onde Isabel França teve lugar foi na secundária Fernando Pessoa — onde começou a ganhar “seis ou sete contos” por mês. Depois, a sua vida financeira foi melhorando à medida que o país também enriquecia. Em 1992 — ano da assinatura do tratado de Maastricht, que definiu as regras em que ia funcionar a moeda única, e da primeira presidência portuguesa da UE — estava a trabalhar no recém-construído Centro Cultural de Belém, primeiro como assessora da comissão instaladora e, depois, como directora do centro pedagógico. A economia atravessava uma fase de boas perspectivas, e de descida das taxas de juro, o que levou as pessoas a deixarem de poupar como referem vários estudos económicos e os dados do Banco de Portugal.

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Manuela, 91 anos, Isabel, 69 anos e Madalena, 38: três gerações que discutem o significado de poupar de forma distinta enric vives-rubio

Foi o que sucedeu com Isabel França, que optou por aproveitar a vida, fazer viagens e investir na educação dos filhos, em vez de guardar parte do salário no banco. “Com os colégios para pagar, as férias, as viagens, não dava para poupar”, recorda. Segundo o último Inquérito à Literacia Financeira da População Portuguesa, editado no ano passado pelo Conselho Nacional de Supervisores Financeiros, a maioria dos portugueses que assume não poupar (41% em 2015 e 48% em 2010) dá como principal razão “o facto de não ter rendimento suficiente para o fazer”.

Apesar de Isabel já trabalhar e ganhar o seu dinheiro, alguns hábitos financeiros mantinham-se iguais aos da mãe. “Era impensável comprar casa, até porque os bancos nem sequer davam o empréstimo todo”, nota Isabel, contando que, depois de se casar, em 1972, alugou um apartamento com o marido em Lisboa com uma renda de 4200 escudos (976 euros). “Era uma loucura para a época, mas a minha família ajudava”, lembra. E acrescenta: “Comprar casa é uma tendência da geração da minha filha.”

Madalena, de 38 anos, concorda. “Hoje há uma grande facilidade [em comprar casa]. Aliás, pode-se ter quase tudo e dá-se menos valor às coisas, ao dinheiro”, diz. Aproveita para falar da avó: “É uma pessoa muito moderna, muito actual, mas cansa-se com a nossa vida.” Manuela confessa o que a cansa e também assusta: o nível de consumismo. “Outro dia fui a casa de um bisneto que tinha 200 brinquedos numa prateleira...” Isabel, no papel de filha e de mãe, interrompe para lembrar a mudança radical no consumo. “Quando as bonecas se estragavam, íamos ao hospital das bonecas, na Baixa. Hoje, compra-se logo outra.” A filha Madalena está de acordo: “Pois é. Hoje é tudo mais barato.” A avó Manuela recorda que no Natal, por exemplo, havia menos presentes: “Nos anos em que eu era criança nem sequer existia o plástico, um produto que é muito mais barato.” Os brinquedos eram feitos em massa, loiça ou lata.

Hoje, um terço das famílias já têm consolas de jogos em casa. Dados da Marktest mostram que, nos últimos 20 anos, o número de estabelecimentos comerciais aumentou 41%. Já os gastos médios, por ano, das famílias atingiram os 20,916 euros, indicam dados do Inquérito às Despesas da Família 2015/2016, do INE. As maiores despesas são com habitação (31,8%), transportes (14,7%) produtos alimentares (14,4%) e restaurantes e hotéis (8,5%).

Madalena assume que sempre foi muito gastadora, mas o facto de ter trabalhado na área da poupança do BES (agora Novo Banco) após se ter licenciado em Gestão ajudaram-na a moldar a atitude. “Ter hábitos de poupança desde criança tem impacto na vida adulta”, remata. Quando compara a sua geração com as da sua mãe e avó, nota que hoje a mulher está mais sobrecarregada. “Tomamos conta dos filhos, trabalhamos e continuamos a gerir o orçamento familiar.” Garante também que a segurança financeira mudou radicalmente. “Existiam empregos para a vida.” Madalena saiu do banco em 2012 e aventurou-se num negócio de produções fotográficas. E no ano passado montou uma empresa, lançou uma marca de roupa e abriu uma loja. No meio de todo este percurso, tem sido difícil poupar. “Os bancos permitem-nos ter tudo, mesmo sem poupanças.”

Em Março , o total de crédito dado às famílias atingiu os 124,9 mil milhões de euros: 99,845 mil milhões para habitação e os restantes 24,245 mil milhões para consumo e outros fins, refere o Boletim Estatístico do Banco de Portugal, divulgado este mês. 

Sete cartões de crédito na carteira

Rui Barradas, de 40 anos, montou em 2014 uma empresa, o Dr. Finanças, para ajudar as pessoas que estão desesperadas com os encargos dos empréstimos. Já 42 mil famílias lhe pediram ajuda para renegociar os créditos. Outras querem libertar-se de tanta despesa. “Em média, cada pessoa tem na carteira sete cartões que permitem pagamentos com juros, seja do banco, dos supermercados, das livrarias”, diz o gestor. E alerta para o facto de muitos portugueses não fazerem ideia de como gerir o dinheiro: “Grande parte gere através do talão do multibanco. Vai vendo o saldo e vai gastando.”

“Há pessoas que pagam tudo através dos bancos, até vão de férias com empréstimos”, sublinha, por seu lado, Madalena França. Já a mãe viveu de perto a mudança que o crédito introduziu nas poupanças das famílias portuguesas. Quando ainda estava a estudar na faculdade, em 1971, andou a angariar sócios para o Diner’s Club, o “pai” dos cartões de crédito, inventado em 1950 pelo empresário norte-americano Frank McNamara depois de um dia se ter esquecido da carteira quando foi a um restaurante. O Diner’s, assim como o American Express, chegaram a Portugal no final dos anos 50, tendo sucesso nas décadas seguintes em resultado da pressão feita pelos turistas que visitavam Portugal, conta Alexandra Rodrigues, do Gabinete de Estudos Regionais da Direcção Regional do Centro do INE, no estudo A importância do cartão de débito em Portugal — uma análise temporal e espacial.  Os anos 80 trouxeram uma nova revolução: o cartão multibanco e as caixas multibanco. Em 1984 surgiu o primeiro banco privado; em 1985 a primeira ATM no país, que foi colocada no Rossio, em Lisboa. Nesse ano, abriram 12 terminais — hoje existem 13 mil espalhados de norte a sul. Já em relação ao cartão de débito, 12 anos após a sua introdução, em 1997, tinham sido emitidos nove milhões.

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"Comecei a viver melhor, mas nunca deu para juntar muito”, garante Gregório Marques. Já a filha, Paula, com 53 anos, assume nunca ter pensado em guardar para o futuro nuno ferreira santos

Gregório Marques tem um cartão de débito, mas nunca teve um de crédito em seu nome. Abriu a sua primeira conta bancária perto dos 40 anos e apenas pediu um pequeno empréstimo ao banco para fazer obras no seu primeiro café na Damaia. Sempre se preocupou em poupar e não gastar no que não era essencial para garantir o negócio e a educação da filha, Paula. Em 1993, vivia a Europa a euforia do mercado único, mudou o café de rua, para ter o negócio mais perto de casa, e em Janeiro de 1994 inaugurou-o com o nome de Maianga — homónimo do largo onde tinha trabalhado em Luanda. “Depois comecei a viver melhor, mas nunca deu para juntar muito”, admite. Faz parte da maioria. É que 90% da poupança total das famílias portuguesas é feita por 20% dos agregados, garantem os especialistas no estudo A Poupança em Portugal’, coordenado pelo economista Fernando Alexandre, ex-secretário de Estado adjunto do ministro da Administração Interna no Governo de Passos Coelho.

Gregório Marques conseguiu pagar os estudos à filha e mantém o negócio. Já Paula encara as finanças de uma forma completamente oposta. Nunca pensou muito em guardar para o futuro. Formou-se em Design de Moda, foi trabalhar com o estilista José Luís Barbosa e, passado algum tempo, tornou-se estilista residente de uma marca de roupa de criança para a qual trabalhou durante 16 anos. “Nos anos 80/90 ganhava muito melhor do que agora”, conta. Em vez de acumular, optou por usar o dinheiro para gozar o momento, mesmo que fosse num simples impulso de consumo (recorda que num sábado, enquanto passeava na Avenida de Roma, entrou numa loja e gastou 600 euros em roupa para o namorado, Carlos). “Hoje tenho menos [impulsos], mas sempre que posso não deixo de fazer o que gosto, nem que seja ir passar um fim-de-semana com o meu filho à costa alentejana”, garante Paula, que em 2012 saiu da empresa onde estava, que faliu na sequência da crise. Agora trabalha numa loja e ajuda o pai no café. E já começa a pensar na reforma.

Susana Albuquerque garante que esta mudança de comportamento perante a poupança é uma tendência. “Havia uma cultura de aforro; e poupar era um valor social importante. Até porque a vida era mais previsível. Agora, as pessoas valorizam as experiências e usam o dinheiro para as viver e concretizar objectivos.”

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Mafalda Muller e Sousa tem 19 anos e decidiu retirar todo o dinheiro do banco para poder poupar. Quer fazer Erasmus e uma viagem a Itália. Diz ser uma excepção entre o seu grupo de amigos rui gaudêncio

A pensar no Erasmus

Mafalda Muller e Sousa tem 19 anos e decidiu retirar todo o dinheiro do banco para poder poupar. “Senão, gastava-o todo”, assume a estudante do 2.º ano de Gestão, no ISEG. Guarda-o em casa, em envelopes que abre apenas para colocar notas, nunca para tirar. Quer ir fazer o Erasmus para Itália e precisa de 1500 euros para somar aos dois mil que a mãe lhe vai dar. Está a poupar desde Dezembro de 2016. Além disso, vai fazer uma viagem com a irmã e uns amigos por Itália e tem de guardar dinheiro para isso. “Coloco sempre de parte alguma da minha mesada de 90 euros e faço trabalhos, como babysitting.” Faz estas poupanças por objectivos a curto prazo. Nunca lhe passou pela cabeça fazê-lo a pensar no casamento ou numa casa.

Mafalda diz ser uma excepção entre o seu grupo de amigos. “As pessoas da minha idade não poupam muito.” No liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, onde estudou, um dia os alunos tiveram uma aula de sensibilização para a poupança, que, recorda Mafalda, a ajudou na sua estratégia. “Mas acho que não terá ajudado os meus amigos. Ainda fizeram contas de quanto poderiam poupar — e até usar em viagens —, se deixassem de fumar. Mas depois esqueceram.”

Este tipo de formação sobre poupança em ambiente escolar é cada vez mais comum. A Associação de Instituições de Crédito Especializado tem programas para crianças e jovens dos 3 aos 18 anos. E também para universitários e adultos. A ideia é promover a educação financeira para ajudar as pessoas a perceberem melhor como poupar. “Desde 2005 que fazemos acções de sensibilização sobre planeamento, gestão de dinheiro e poupança. E temos feito muitas em escolas que nos pedem”, explica Susana Albuquerque. Adianta que a associação até criou um manual sobre educação financeira para professores e alunos.

A socióloga Raquel Ribeiro, professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, realizou um estudo inédito, em duas escolas do 1.º ciclo: uma pública, a EB Arquitecto Victor Palla, na Penha de França; outra privada, os Salesianos, no Estoril. A primeira frequentada por filhos de famílias de classe média baixa, desempregados e imigrantes; a segunda, por alunos de classe média alta. Foram entrevistadas 245 crianças dos 8 aos 11, dos 3.º e 4.º anos de escolaridade.

O objectivo era tentar perceber como lidam com o dinheiro e o consumo e analisar também o seu comportamento face à ideia de poupança depois de lhes ter sido disponibilizado formação específica sobre o assunto. O trabalho contou com a colaboração de um banco que, com dois voluntários, promoveu quatro acções junto dos alunos: uma aula de 90 minutos sobre “como podemos poupar”; a leitura de um livro didáctico; uma visita a uma agência do banco; e uma ida a um supermercado local que incluiu uma compra simulada.  As crianças foram divididas em grupos e a cada um foi entregue um plafond de 100 euros para comprarem produtos necessários para uma semana nas suas casas. “Mas no fim eles acabaram por se divertir, em vez de estarem focados na tarefa. Apesar de respeitarem mais ou menos o plafond de 100 euros, não seguiram muito o que os voluntários lhes disseram, como comparar preços e optar pelos mais baratos. Compraram o que lhes apeteceu, não ligando muitas vezes às marcas brancas”, esclarece a socióloga. Raquel Ribeiro refere ainda que, às vezes, a linguagem da formação não é a mais adequada e explica que hoje em dia há uma mudança no comportamento: “Dantes, valorizava-se mais a poupança. Parecia até mal fazer diferente e não existiam tantos estímulos à compra. Agora, dá-se mais valor às experiências.”

Apesar disso, nota, “durante os inquéritos foi fácil perceber que as crianças ouvem em casa falar de poupanças e têm noção do que se trata”. Praticamente todas dizem que poupar é importante. “As crianças de Lisboa enfatizam mais a ideia de poupança por negação do gasto; os inquiridos do Estoril têm mais a noção de que poupar garante dinheiro no futuro”, indica o estudo.

Através das entrevistas, percebeu-se que 75% usam mealheiro, 50%  têm conta num banco e mais de 90% recebem dinheiro todos os meses - 18 euros, na Penha de França, e 22, no Estoril.  Na escola privada, 90% dos entrevistados referem que não gastam o que recebem, percentagem que desce para 73% na escola pública. “Mas todos têm a noção de que devem começar a poupar agora. Só que os alunos do Estoril têm maior convicção nisso, e são os que mais falam em aplicações financeiras”, diz socióloga, garantindo que o trabalho permitiu concluir que “a educação dos pais é decisiva na forma de encarar a poupança”.

No último Inquérito à Literacia Financeira dos Portugueses em 2015, fica claro que os homens de 40 a 54 anos, com ensino superior e de agregados com rendimento acima dos 2500 euros são os que têm mais conhecimentos financeiros. E 90% dos que não têm instrução pouco ou nada sabem sobre conceitos como os juros e o défice.

Maioria poupa em conta a prazo

Rosa Araújo, de 77 anos, tem apenas a 3.ª classe da antiga escola primária. “Sempre trabalhei no campo, com a enxada na mão, e nunca tive conta no banco”, diz, explicando que morava na aldeia do Barral, em Ponte da Barca, e que o que ganhou nunca deu para poupar. Já o pai, carpinteiro, que também trabalhava no campo com a mãe, ainda conseguia juntar uns trocos. “Guardavam o dinheiro no armário da cozinha”, recorda, contando que havia vizinhos que chegavam a esconder as notas “em buracos nas paredes”. Hoje vive com uma reforma de 350 euros, que recebe em casa, através de um postal dos CTT. “O meu filho teve um acidente, não pode trabalhar e eu tenho de pagar o empréstimo que ele fez para a casa com parte desse dinheiro.”

É também o nível de escolaridade, o sexo e a situação laboral que influenciam a forma como as pessoas optam por guardar as suas poupanças. Os depósitos a prazo são os preferidos pela maioria. Em 2016, existiam 96 milhões de euros em contas a prazo e 42 milhões de euros à ordem, referem dados da Pordata. Os adeptos dos depósitos a prazo são sobretudo homens, mais velhos e que trabalham por conta de outrem. A região centro é a que apresenta maior sucesso nestes depósitos.

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João Manuel Gomes, 75 anos, trabalhou sempre na indústria têxtil. Nunca pediu empréstimo ao banco adriano miranda

Nascido em Coimbra, João Manuel Gomes, de 75 anos, trabalhou a vida toda numa empresa da indústria têxtil. Em criança, foi com a família viver para o Porto e decidiu seguir a mesma carreira de um tio, especialista em estamparia. Depois de concluir o serviço militar, em 1968, fez um curso técnico de estamparia na Suíça, e nos anos seguintes estagiou em Espanha, França, Itália e Holanda. “Regressei já como colaborador efectivo do departamento técnico da empresa [de indústria têxtil], onde fiquei até ao final da carreira”, conta. Observa que naquela época as pessoas tinham emprego para a vida: ele entrou com 23 anos, ficou durante 43. “Quando saí, em 2006, era chefe de departamento.” Pelo meio casou-se, teve uma filha, foi ganhando dinheiro e abriu duas contas bancárias. Uma à ordem, para os gastos diários, e outra a prazo, onde ia colocando a sua poupança. E escreveu Estamparia ao Metro e à Peça (edições Publindústria, 2007).

“Com a conta a prazo, há oito anos conseguimos comprar uma casa nova no Porto e antes ajudámos a nossa filha a comprar a dela.” Fora de questão, para João Manuel Gomes, estava recorrer a um empréstimo. Quando olha para os tempos actuais, descobre facilmente grandes diferenças com o que existia na altura em que começou a sua vida de casado. “Ir ao cinema era um luxo. Em regra ao sábado, o bilhete custava 10 ou 20 cêntimos.”

Além da conta a prazo, João Manuel colocou parte das poupanças em certificados de aforro, porque sentia segurança nessa opção. “Ouvia-se histórias de pessoas que tinham muitas acções e que com o 25 de Abril deixaram de ter valor”, comenta. Também nunca investiu num plano poupança reforma, nem quis aventurar-se em seguros e fundos de investimento. Estes e a compra de acções são, de acordo com o estudo A Poupança em Portugal, mais procurados por agregados jovens da zona de Lisboa, enquanto os certificados de aforro conquistam pessoas entre os 55 e os 64 anos, da zona centro do país. As seguradoras, por seu lado, conseguem, garante a Associação Portuguesa de Seguradores, captar 20% da poupança em planos Poupança Reforma e Educação e produtos de capitalização.

No final de 2015, a taxa de poupança rondava os 4,2% — três vezes inferior à média da zona euro, de 12,5%. Os dados mais antigos do Banco de Portugal datam de 1953 — o ano em que Manuela Nogueira alugou a sua casa — e mostram que desde aí se começou a poupar em Portugal. Primeiro, pouco: nesse ano, as famílias tiveram um rendimento de 47.959 milhões de escudos (22,596 milhões de euros) e apenas pouparam 1.753 milhões de escudos (826 milhões de euros), isto é, 3,7%. Mas o valor foi subindo: em 1968 — ano em que Gregório Pedro foi para Angola — a taxa já chegava aos 17,4%. E em 1971 — quando Isabel França andava a arranjar sócios para os cartões de crédito — a poupança das famílias já representava 26,1% do rendimento. Em 1972 atingiu-se o máximo até hoje: 30,5%.

No arquivo histórico da Caixa Geral de Depósitos há registos desta década sobre contas-poupança. Há um documento de Agosto de 1970 que define as regras dos depósitos poupança-habitação: os clientes podiam abrir uma conta, onde todos os meses depositavam pelo menos 250 escudos (71 euros) e ao fim de três anos, desde que ali tivessem 15 contos (4300 euros), podiam pedir um empréstimo. Mas com limites: o valor seria quatro vezes o que estava acumulado na conta e nunca podia exceder os 600 contos (172 mil euros).

Após esta década de sucesso da poupança, nos anos 80 os valores ainda se mantiveram nos 20%, mas no início dos anos 90 começou a assistir-se a uma diminuição constante.

“A queda na poupança conheceu um breve interregno em 2009 e 2010, quando a crise se agudizou”, explica Susana Albuquerque, acrescentando que os bancos (que deixaram de ter financiamento no exterior) começaram a cortar a concessão de crédito. Dados do Banco de Portugal, divulgados em Agosto de 2011, ilustraram o que se passava: em Junho desse ano, os novos empréstimos às famílias foram de 918 milhões de euros — menos 579 milhões de euros do que no ano anterior e o valor mais baixo desde 2003, altura em que o Banco de Portugal começou a registar estes valores. “Essa dificuldade no acesso ao crédito e a deterioração das expectativas e confiança (em termos de emprego e de rendimento) levaram as famílias a travar o consumo e a adiar intenções de compra”, remata Susana Albuquerque, notando que final do período de intervenção da troika, em 2014, os portugueses desistiram de novo de pôr os euros de lado.

“Desde a altura em que nasci, há 90 anos, até agora  houve de facto uma mudança abissal”, conclui Manuela Nogueira, a sobrinha de Fernando Pessoa, que depois de as filhas se casarem ainda começou a trabalhar como agente imobiliária freelancer e editou 21 livros, alguns sobre o tio — que, entre os seus vários textos, escreveu no Livro do Desassossego: “O dinheiro é belo, porque é uma libertação.”

* As conversões e actualizações de escudos para euros foram feitas de acordo com o conversor do INE

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