Música Viva, um festival resistente

Já na sua 27.ª edição, o evento dirigido por Miguel Azguime continua a apontar para a criação contemporânea – e este ano, em especial, para as relações da música com a tecnologia.

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O Sond'Ar-te Electric Ensemble abre o Festival Música Viva este sábado, às 21h30 DR

O Sond'Ar-te Electric Ensemble abre o Festival Música Viva este sábado, às 21h30, com um concerto "misto" em que fará a estreia mundial de obras de compositores portugueses e em que combinará instrumentos acústicos com a electrónica. O festival, este ano já na sua 27.ª edição, apresenta-se como “uma iniciativa integrada de fomento e divulgação da criação contemporânea, especialmente dedicada aos compositores portugueses e às relações da música com a tecnologia”.

Fomos falar com Miguel Azguime para conhecer em detalhe as propostas deste ano. Encontramo-lo atarefado com os últimos preparativos no espaço onde decorrerá o Música Viva, o O'culto da Ajuda, na Travessa das Zebras, em Belém, Lisboa. “Vou só lavar as mãos antes de conversarmos” – este director artístico não é um funcionário de gabinete, põe directamente as mãos à obra na preparação do espaço, posto de pé pela associação Miso Music Portugal, que organiza o festival, e das condições técnicas para a realização do festival. Aberto e bem equipado tecnicamente, o O'culto da Ajuda é também o reduto de um festival que, diz Azguime, “acontece numa lógica de resistência”: “Estamos num ano de transição, e perante um orçamento insuficiente. Vivemos um contexto problemático, à espera de um reforço orçamental que o Ministério da Cultura ainda não definiu.” Mas o que é problemático não é apenas a falta de dinheiro, acrescenta: “É preciso defender a criação musical em toda a sua liberdade, fora das lógicas do mercado que não têm a ver com o exercício da criação artística.”

O Música Viva coloca-se no terreno do que poderíamos chamar “música de arte”. Mas quer apresentar “o maior número possível de novas obras, de estéticas diferentes”. Para além disso, tem a preocupação especial de estabelecer relações íntimas com a tecnologia, que parece ser uma aliada natural da música nova e deste festival, desde o seu começo. A diversidade de propostas apresentadas este ano inclui, para além do concerto do Sond'Ar-te Electric Ensemble, vários em que se promovem cruzamentos entre disciplinas, artes, técnicas e culturas. No domingo, por exemplo, o projecto Mutabilis (de Paula Pinto, António Sousa Dias, Rita Casaes e José Luís Ferreira) apresenta uma espécie de instalação/performance, cruzando movimento, electrónica em tempo real e videomapping, num projecto experimental e pluridiciplinar que promete surpreender. Na terça-feira, dia 23, o grupo vocal Soli-Tutti, dirigido por Denis Gautheyrie, apresenta uma proposta que pretende cruzar fronteiras musicais e geográficas, com obras de compositores portugueses e espanhóis, e convidando instrumentos tradicionais (viola beiroa, gaita de foles, acordeão) a participar num projecto de nova música, com vozes e outros instrumentos. É também de relações imprevistas entre a música europeia e a música africana que se faz o concerto do Performa Ensemble no dia seguinte.

Entre vários outros concertos de música electrónica e electroacústica, poderíamos destacar o Laboratório de Música Mista da Escola Superior de Música de Lisboa. Para o director do festival, é uma oportunidade especialmente boa para mostrar “obras de alunos ou jovens compositores, numa função pedagógica a que o festival dá todos os anos atenção”. Nesse concerto, entre outras experimentações e improvisações colectivas, poderemos ouvir uma obra em que uma partitura é desenhada em tempo real enquanto os músicos vão tocando...

Falta mundo a Portugal

Nos dois últimos dias (26 e 27) haverá vários concertos com a Orquestra de Altifalantes da Miso Music, com obras portuguesas e de outros compositores, como Roberto Palazzolo, premiado no concurso Música Viva do ano passado. E ainda um concerto final que promete: quatro músicos excepcionais – Henrique Portovedo (saxofones), João Barradas (acordeão), Filipe Quaresma (violoncelo) e Nuno Aroso (percussão) – formaram o Art Clang Ensemble, que faz também do ruído matéria de criação. E irão interpretar, entre outras, a estreia mundial de uma peça de Miguel Azguime, Luminiferous Aether, que o compositor define como “ressonância de um grito de desespero”, mas com uma ponta de esperança.

“Espero que este país mude, que as propostas sejam abraçadas para a riqueza e a diversidade dos imaginários das pessoas”, diz este criador incansável e organizador, com Paula Azguime e outros cúmplices, deste festival. Uma iniciativa só possível, nas suas palavras, graças a “uma dedicação sem limites, à generosidade dos músicos e dos compositores e às relações com quem cria”. Mas, adverte, anda a faltar mundo ao país: “Portugal está fechado. Ir ao Música Viva é assistir a uma boa parte do que se está a fazer cá, mas Portugal tem de se abrir.”

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