Macron?

Macron cedo perceberá que só pode ser social, não liberal.

Algures, em data e local de que já não me recordo, Eduardo Lourenço escreveu: “Portugal salva-se se a Europa se salvar.” Muito, quase tudo mudou desde então, mas este dictum não perdeu actualidade. E hoje em dia podemos acrescentar: a Europa salva-se se a França se salvar. Não somos só nós, são vários os países que vivem do oxigénio europeu. O destino de milhões de pessoas está, portanto, sobre os ombros de Emmanuel Macron. 

Em Junho de 2016, interrogado pela revista Le Point sobre o que pensava de Macron, Michel Rocard respondeu: “A verdade francesa é que já não se sabe o que é a direita e a esquerda.” Sim, Macron “libertara-se totalmente” dos “anacronismos” mais aberrantes da esquerda tradicional, mas tinha contra ele o facto de ignorar o “socialismo das origens” e, por conseguinte, não “ter a consciência de ser portador de uma história colectiva”. A ausência de consciência histórica seria, para Rocard, um dos factores que facilitaram a descaracterização do socialismo.

A explicação do desnorte identitário e programático do socialismo não cabe certamente em três linhas, mas mesmo esta anotação já nos ajuda a entrever os trabalhos de Hércules que aguardam Emmanuel Macron. Como fundar e depois dirigir um novo partido, moderado mas reconhecido como de esquerda pelos incontáveis socialistas que a derrota eleitoral do radical-populista Hammon condenou à orfandade partidária? E como fazê-lo ao mesmo tempo que se enjeitam alguns dos mais importantes signos identitários da esquerda?

Mais: será certo que Macron quer fundar um novo partido de esquerda? Independentemente das suas convicções pessoais, não poderá desviar-se muito disso, pelo motivo de que o espaço à direita está ocupado e de que o centro não existe, apesar da existência do centrista MoDem (Mouvement Démocrate) de François Bayrou. O centro, em concreto e materialmente, resulta da colaboração ou coligação entre a esquerda e a direita. Macron não poderá dispensar o apoio do socialismo. Para captar este apoio, porém, terá de ser suficientemente socialista... e será suficiente a componente “social” do seu liberalismo ? Será que lhe basta apresentar-se como um social-liberal ou liberal-social?

Alguém já escreveu que a vitória de Macron é algo “paradoxal”: uma vitória muito grande, porém “ambígua”. Em política, a ambiguidade não é um bom condimento, antes fragiliza. O novo presidente obteve uns esmagadores 65% dos votos. Mas esta massa de votantes é não apenas muito heterogénea, como se divide e subdivide entre fidelidades ou seitas que se detestam ou são mesmo incompatíveis entre si. Depois, muitos e muitos dos votos que este embolsou foram votos contra Le Pen e não a favor de Macron. Mais: os que votaram Hammon e Mélenchon não esgotam o imenso universo dos que em França odeiam a social-democracia.

Macron, porém, não poderá deixar de incluir a social-democracia no seu mix de políticas “liberais-sociais”. Aliás, as quezílias e as “frondas” já começaram, com Bayrou a acusar Macron de violar o acordo pré-eleitoral selado entre ambos. Logo na quinta-feira à noite, quatro dias após as eleições, um dirigente da REM (République En Marche), o nascente partido do Presidente, teve de ir à televisão garantir que não havia “crise” nas relações entre a REM e o MoDem, mas simplesmente “tensões” ultrapassáveis e inevitáveis na medida em que toda a “renovação em profundidade” causa obrigatoriamente “turbulências”.

Macron saiu então do “sistema” para o “renovar em profundidade” a partir do exterior. A minha impressão, porém, é de que a maioria dos que nele votaram fizeram-no para precisamente conservar o “sistema” — o statu quo, o tradicional trade-off entre os franceses e o poder: os “direitos adquiridos” são sagrados, intocáveis e perpétuos. Qualquer renovação esbarra nesta muralha de aço. Macron cedo perceberá que só pode ser social, não liberal.

Lembremos Abril de 2002. Lionel Jospin, após ter sido cinco anos o primeiro-ministro socialista mais eficaz da V República (p. ex. diminuiu o desemprego em 25%), enfrentou na primeira volta das presidenciais a concorrência de vários agrupamentos esquerdistas, o que dispersou o voto à esquerda e ofereceu de bandeja a passagem à segunda volta a Chirac e Le Pen. O puro ódio às reformas “federou” grupos e grupelhos numa aliança contra-natura com o mais feroz conservadorismo. Todos os candidatos defendiam uma causa, mas “todas essas causas não passavam da camuflagem deste objecto obscuro do ressentimento: a social-democracia” (J. Julliard, Le malheur français, 2005). A esquerda votou massivamente contra Jospin, mal-grado o seu currículo em matéria de políticas sociais — ou talvez mais exactamente por causa delas: ou a revolução ou nada; ou “nós” ou “eles”; ou Mélenchon ou Le Pen — tudo menos Macron!

Para reformar a França em “profundidade”, Macron precisa portanto de vários milagres. Oxalá os faça, para salvar a França, salvar a Europa e nos salvar a nós...

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