Cannes e Arnaud Desplechin: partida em falso

Não se vive duas vezes a não ser dentro dos filmes. Arnaud Desplechin foi um caso de euforia há dois anos em Cannes, este ano a reacção foi gelada.

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A conferência de imprensa do filme Les Fantômes d’Ismaël, de Arnaud Desplechin LUSA/JULIEN WARNAND / POOL
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Charlotte Gainsbourg na conferência de imprensa Reuters/REGIS DUVIGNAU
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Marion Cotillard Reuters/ERIC GAILLARD
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Charlotte Gainsbourg Reuters/ERIC GAILLARD
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Louis Garrel LUSA/JULIEN WARNAND
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Charlotte Gainsbourg e Louis Garrel LUSA/JULIEN WARNAND
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Mathieu Amalric e Marion Cotillard LUSA/JULIEN WARNAND / POOL
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Hippolyte Girardot LUSA/JULIEN WARNAND / POOL
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Arnaud Desplechin LUSA/JULIEN WARNAND / POOL
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Arnaud Desplechin LUSA/JULIEN WARNAND / POOL
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A equipa do filme a posar para os fotógrafos Reuters/JEAN-PAUL PELISSIER
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Mathieu Amalric no filme Les Fantômes d’Ismaël dr
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Louis Garrel no filme dr
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Charlotte Gainsbourg e Marion Cotillard no filme Les Fantômes d’Ismaël dr
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Charlotte Gainsbourg e Marion Cotillard em Les fantômes d'Ismaël

“Quantas vidas já viveste?”, pergunta-se em Les Fantômes d’Ismaël, de Arnaud Desplechin; “duas, três”, as pessoas desaparecem e reaparecem, há uma mulher que vive duas vezes, o filme está cheio de nomes, Ismaël, Dedalus, que viveram nos outros filmes do realizador francês, e parte do cast participa da reinvenção de uma antiga história de amor com Desplechin (Mathieu Amalric, Hippolyte Girardot… até Marion Cotillard tinha estado em Combien je me suis disputé, foi a sua estreia, em 1996).

Não é certamente coincidência por isso que o filme chegue esta quinta-feira às salas francesas em duas versões, uma mais curta, a que passou no festival, de 1h50, a que Arnaud Desplechin chama “versão sentimental”, e outra de 2h10, a “versão mental”, o que bem vistas as coisas é sempre a amplitude do cinema de Desplechin, ir de uma coisa a outra – e cada vez mais explicitando o desejo de fazer vários filmes com um só filme.

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Charlotte Gainsbourg e Marion Cotillard em Les fantômes d'Ismaël dr

Se recordarmos que há dois anos o realizador francês não ficou na Selecção Oficial de Cannes e foi “apanhado” por uma secção concorrente, a Quinzena dos Realizadores, e que isso fez correr muita tinta, ainda por cima meses depois esse filme — Três Recordações da Minha Juventude, rejeitado pelo programa oficial, celebrado pela secção alternativa e pela imprensa — valeria ao realizador um César, talvez se possa dizer que houve de parte dos programadores do festival um desejo, agora, de emendar. No fundo, quererem também ter outra versão das suas vidas. Les Fantômes d’Ismaël foi escolhido para abrir a 70.ª edição do festival. O que para já se pode dizer, depois de uma circunspecta, para não dizer gelada, reacção na primeira apresentação para a imprensa, é que não se vive duas vezes a não ser dentro dos filmes.

Desplechin abriu o jogo (na conferência de imprensa), assumindo a referência que era o filme anterior, e que desse ambiente melancólico, juvenil e onírico ele tinha querido fazer uma versão mais madura (e igualmente onírica), trabalhando, à sua maneira, a, como ele disse, obsessão muito americana com a “second chance”.

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Mathieu Amalric no filme Les Fantômes d’Ismaël dr
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Charlotte Gainsbourg e Marion Cotillard no filme Les Fantômes d’Ismaël

A personagem de Dedalus, por exemplo, nascera em Comment je me suis disputé... (ma vie sexuelle)?, era interpretada por Mathieu Amalric, assistente de Filosofia, razoavelmente misógino, que gostaria de escrever a sua biografia como romance de aventuras... Três Recordações da Minha Juventude dava-lhe essa oportunidade: seguíamos as suas aventuras como jovem espião na URSS da Guerra Fria. Agora reencontramos o espião, é interpretado por Louis Garrel, mas é desta vez a personagem do filme que o realizador Amalric, o Ismaël do título, está a escrever e a filmar – no momento em que regressa a mulher deste que desaparecera da sua vida 20 anos antes e que se julgava morta (Carlota, como a Carlotta Valdez do Vertigo de Hitchcock), o que vai fazer nascer um triângulo amoroso, porque Ismaël está casado agora com Charlotte Gainsbourg.

Há trocas de papéis e de guarda-roupas a servirem o jogo (e há jogos com a literatura e a pintura), mas a paródia voluntária não atenua o peso do bolo excessivamente cozido. Uma das coisas bonitas de Três Recordações da Minha Juventude era o filme parecer uma projecção de Comment je me suis disputé...(ma vie sexuelle)?, como um sonho desse filme – até porque havia aquele plano lindíssimo no Comment… de Amalric a adormecer, como se nessa imagem estivesse a criação de Três Recordações da Minha Juventude. Les Fantômes d’Ismaël, e já que Desplechin falou na obsessão americana com as segundas oportunidades, parece mais um remake. Nota-se — de Comment je me suis disputé...(ma vie sexuelle)? a Três Recordações da Minha Juventude e deste a Les Fantômes d’Ismaël – uma explicitação do romanesco, do onirismo, do jogo com a aventura que já toca a retórica — a própria autoparódia está incluída.

Como abertura de Cannes soou a falsa partida – mas uma lindíssima prestação de Desplechin, na conferência de imprensa, ao falar na escolha do cast, ao falar na forma como Marion Cotillard na sua carreira se tem aproximado do mito e simultaneamente se desprende do mito ou como Charlotte Gainsbourg tem sido a actriz mais serena a lidar com “o escândalo” (por causa de Lars von Trier mas não só). E pode ser que tudo viva outra vez com a “versão mental”.

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