As Ilhas Feroé estão com um olho na independência e outro no "Brexit"

Os feroenses preparam um referendo que pode iniciar o caminho para a independência total, ao mesmo tempo que procuram minimizar o impacto do "Brexit" na economia.

Foto
As Ilhas Feroé contam com pouco mais de 50 mil habitantes e cerca de 70 mil ovelhas Bob Strong/Reuters

Um arquipélago com pouco mais de 50 mil habitantes, composto por 18 ilhas, com mais ovelhas do que pessoas (há cerca de 70 mil destes animais), quase perdido no Atlântico Norte entre o Reino Unido, Islândia e Noruega. Estas são as Ilhas Feroé, e parecem não ter mais nada para contar do que isto. Porém, a sua história é longa, e está prestes a conhecer alguns dos capítulos mais importantes da sua existência: a independência completa da Dinamarca e o desafio do “Brexit”.

O primeiro-ministro das Ilhas Feroé, Aksel V. Johannesen, anunciou em Fevereiro que, no próximo ano, vai ser submetida a referendo uma nova Constituição que poderá dar início à separação definitiva do arquipélago em relação ao Reino da Dinamarca. Copenhaga ainda é responsável por assuntos como a defesa, policiamento, justiça, políticas monetárias ou as relações internacionais daquele território.

“Penso que este referendo não vai alterar nada de fundamental nas relações entre as Ilhas Feroé e o mundo”, diz ao PÚBLICO Hans Andrias, professor do departamento de História e Ciências Sociais da Universidade das Ilhas Feroé, sublinhando que não é a consulta em si que irá determinar a manutenção dos laços com a Dinamarca.

Numa perspectiva mais legal, e reflectindo sobre o que originou a marcação do referendo, Bárður Larsen, professor de Direito na mesma universidade, diz que uma “possível interpretação é a de que o povo das Ilhas Feroé não tem uma Constituição que considere sua”. Só que o documento objecto do referendo prevê, efectivamente, o direito à autodeterminação dos feroenses, abrindo porta a uma posterior votação sobre uma possível declaração de independência do território.

Ao mesmo tempo que este debate acontece, as pescas, um sector fundamental para a economia feroense, pode enfrentar um sério risco com o "Brexit", a saída do Reino Unido da União Europeia. São dias agitados em Tórshavn.

Do que se trata o referendo constitucional?

“A minha tarefa consistiu em consolidar um espectro de pontos de vista, com o objectivo de alcançar um consenso tão alargado quanto possível sobre esta questão fundamental para a sociedade das Ilhas Feroé”, afirmou o primeiro-ministro, em comunicado, no dia em que anunciou a convocação do referendo. A data já foi marcada: 25 de Abril de 2018.

Esta intenção feroense remonta já há alguns anos. “Os antecedentes do actual projecto constitucional feroense podem ser identificados no programa de independência lançado pela coligação independentista que chegou ao Governo em 1998”, explica Bárður Larsen. “Considerou-se natural que um Estado independente das Ilhas Feroé redigisse a sua própria Constituição”, continua o professor de Direito.

Em 1999, foi estabelecido um comité que se comprometeu a apresentar uma proposta até Julho de 2000. “Mas o trabalho do comité prosseguiu mais lentamente do que o esperado. Os prazos foram constantemente adiados (para 2001, 2003 e depois outra vez para 2004). Finalmente, duas propostas preliminares foram apresentadas, uma em Abril de 2004, e a segunda em Dezembro de 2006. Esta segunda basicamente serviu de base para discussões posteriores”, relembra Larsen.

“O Governo feroense falhou a celebração de um acordo com o Governo dinamarquês em relação ao assunto do prazo para uma redução dos subsídios e os referendos foram cancelados. Desde então, o comité tem trabalhado numa proposta para a Constituição das Ilhas Feroé, mas apenas em 2015, quando o Partido Republicano [independentista] se tornou novamente parte do Governo, é que o tema do referendo se tornou um assunto real do Governo”, elucida, por sua vez, Hans Andrias.

“No entanto, o referendo que está agora previsto para 2018 não pretende ser um referendo sobre a separação das Ilhas Faroé da Dinamarca”, esclarece Andrias. “O partido que lidera o Governo, o Partido Social Democrata, não é um partido que pretenda separar as Ilhas Faroé da Dinamarca, mas apenas quer estabelecer que a autoridade para decidir a questão da separação da Dinamarca é, em última análise, apenas do povo das Ilhas Feroé e não das autoridades do Estado dinamarquês. A separação da Dinamarca exigiria um novo referendo”, afirma Hans Andrias.

Bárður Larsen oferece a mesma explicação. “Ao mesmo tempo – ou, gradualmente, ainda depois dos relatórios de 2004 e 2006 – o projecto tornou-se bastante neutro e separado do projecto independentista”, diz, acrescentando que o nome do órgão foi até alterado, afastando-se do “direito básico que, num contexto tradicional dinamarquês, possuía alguns tons de independência”. A denominação passou a ser de apenas “comité constitucional”.

Apesar de o próximo referendo não estabelecer, por si só, a independência total de Copenhaga fica dado o tiro de partida. “Uma das razões mais óbvias para se avançar com uma Constituição feroense é a irrelevância da Constituição dinamarquesa para o povo das Ilhas Feroé”, diz Larsen. “A última vez que a constituição foi alterada, em 1953, a participação dos eleitores feroenses foi de apenas 7,6%”, recorda o especialista ouvido pelo PÚBLICO. Também quando se referendou a alteração da lei de sucessão ao trono dinamarquês, apenas 10% dos feroenses se foram às urnas, ficanda demonstrada a ausência de uma ligação significativa entre os habitantes do arquipélago e a Constituição que os governa.

Dos Vikings ao sistema político actual

A origem dos feroenses é antiga, e cruza-se com alguns dos exploradores e guerreiros mais famosos da História. No início do século IX, os vikings noruegueses estabeleceram, pela primeira vez, aquilo que viria a ser o povo feroense. “As Ilhas Feroé eram originalmente habitadas por noruegueses e celtas nos anos 800 e 1000 d.C. A cultura e linguagem eram originalmente norueguesas, mas desenvolveram-se na sua própria direcção e tornaram-se feroneses”, relata Bárður Larsen. Em 1380, juntamente com a Noruega, as Ilhas Feroés tornaram-se parte da Dinamarca através de um casamento régio internórdico que foi formalmente consagrado pelo Tratado de Bergen quase um século depois, em 1450.

Isto permaneceu assim até à II Guerra Mundial, altura em que as vias de comunicação entre Tórshavn, a capital faroense, e Copenhaga, ocupada pela Alemanha Nazi, foram cortadas. As Ilhas Feroé, defendidas à época por Londres, tornaram-se senhoras do seu destino. Em 1946, pela primeira vez desde a sua existência, a população feroense pôde escolher o que queria para o seu futuro e, num referendo, votaram por um Estado independente. Aprovada pelas autoridades dinamarquesas, a votação obrigou Copenhaga a abrir negociações sobre o novo modelo de governação, que entrou em prática a partir de 1948.

“Quando a Noruega se separou da Dinamarca em 1814, as Ilhas Feroé continuaram a ser parte da Dinamarca. No final do séc. XIX, evoluiu-se para uma autoconsciência nacional nas Ilhas Feroé: as pessoas não estavam felizes por serem consideradas dinamarquesas”, desenvolve Larsen. “Politicamente, isto resultou numa evolução gradual em direcção a uma maior independência interna”, continua. A autonomia quase total experimentada durante a II Guerra Mundial veio dar mais um empurrão nesse sentido. Toda esta história desemboca nas alterações constitucionais agora propostas, que pretendem formalizar a autonomia feroense.

Assim, e como se lê no site do Governo, as Ilhas Feroé “são uma Nação autónoma com um elevado grau de autonomia abrangida pela soberania externa do Reino da Dinamarca”. O sistema político “é uma variação do estilo escandinavo da democracia parlamentar”, sendo que a Assembleia nacional, “um dos parlamentos mais antigos do mundo”, é constituído por 33 membros eleitos. Além destes deputados, outros dois são eleitos para representarem o arquipélago no Parlamento de Copenhaga.

Apesar de prever que pouco se alterará com o referendo, Hans Andrias diz que se a proposta “for aprovada por uma larga maioria no Parlamento feroense e se for aceite pelo Governo dinamarquês - que até agora tem sido relutante em aceitar um referendo nas Ilhas Feroé sobre uma Constituição que estabelece a soberania do povo feroense porque isso entraria, na visão deles, em conflito com a Constituição dinamarquesa - então o referendo pode criar um entendimento comum, ou um consenso, nas Ilhas Feroé, sobre as relações com a Dinamarca”. Por isso, o professor é da opinião de que o “sucesso do referendo dependerá do grau de apoio político nas Ilhas Feroé, o que também afectará as autoridades dinamarquesas, mas, naturalmente, uma oposição dinamarquesa pode provocar e reforçar o movimento separatista”.

Como sobreviver ao "Brexit"?

No meio de tudo isto, as Ilhas Feroé enfrentam outro desafio: o “Brexit”. Os números são claros: 95% das exportações feroenses dizem respeito às pescas ou produtos piscatórios. E o Reino Unido é o segundo destino dessas exportações.

“A pesca e o comércio das Ilhas Feroé são particularmente susceptíveis de serem afectados pela saída do Reino Unido da União Europeia. O Governo das Ilhas Feroé pretende assegurar uma estreita relação futura tanto com o Reino Unido como com a União Europeia, depois de o ‘Brexit’ se tornar realidade”, lê-se neste artigo neste site relativo aos assuntos feroenses.

“O Reino Unido continua a ser um dos mercados mais importantes para as exportações do mar das Ilhas Feroé. Um novo acordo comercial com o Reino Unido para garantir as futuras exportações é, portanto, uma prioridade do Governo das Ilhas Feroé”, dizia, por sua vez, o executivo em comunicado no passado mês de Abril. Ficavam assim lançados os objectivos para enfrentar o “Brexit”: chamar Londres para a mesa das negociações e estabelecer um novo acordo comercial. E para isso foi formado um grupo de trabalho, formado por representantes feroenses em Londres e em Bruxelas, assim que se conheceram os resultados do referendo em Junho do ano passado e que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia.

O que se pretende é que o acesso dos pescadores feroenses a águas britânicas, e vice-versa, seja regulado e acordado neste processo. Esta situação foi já estabelecida por Bruxelas, apesar de as Ilhas Feroé não fazerem parte da União Europeia – em 1973, quando a Dinamarca se juntou ao bloco europeu, as Ilhas Feroé decidiram não acompanhar Copenhaga. Esta situação poderá, por isso, ser alterada através do “Brexit”, o que poderia constituir um relevante contratempo para a economia feroense.

Foto
De entre a secular tradição piscatória feroense está uma pesca anual à baleia que tem provocado polémica internacional nos últimos tempos. Apesar de na Dinamarca ser uma actividade proibida, nas Ilhas Feroé é permitida ainda que com algumas restrições Andrija Ilic/reuters

“O mercado europeu tem uma imensa importância e as Ilhas Feroé têm acordos de comércio livre com a União Europeia. O ‘Brexit’ será um grande desafio até que o ‘Brexit’ seja regulado por acordos entre as Ilhas Feroé e a União Europeia”, realça Hans Andrias.

“O grande problema poderá ser o facto de as autoridades britânicas provavelmente concederem prioridade a acordos de maior importância para o Reino Unido do que aqueles com as Ilhas Feroé. O ‘Brexit’ vai criar desafios para as exportações de pesca feroense”, diz ainda o professor ouvido pelo PÚBLICO.

Mas virá da União Europeia o principal apoio às Ilhas Feroé durante este processo? Andrias duvida, e aponta para Copenhaga como potencial salvaguarda dos interesses do arquipélago. “A União Europeia pode não fornecer o apoio mais importante para os desafios das Ilhas Feroé em resultado do ‘Brexit’, mas as autoridades dinamarquesas podem utilizar as suas ligações em Bruxelas para apoiar os interesses das Ilhas Feroé”. Até porque, tal como acontece com o Reino Unido, durante este processo a União Europeia poderá ter assuntos mais urgentes a resolver.

"Bairro europeu" é uma rubrica com histórias que estão um pouco fora do radar das notícias nos países europeus

Sugerir correcção
Ler 12 comentários