Estado condenado a pagar 12 milhões de euros a aviários

Foi uma das maiores crises de segurança alimentar de sempre e levou ao abate de 1,6 milhões de frangos, perús, patos e codornizes. Culpa ficou solteira - se é que houve culpados - mas tribunais têm obrigado a indemnizar produtores.

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A crise já tinha passado quando um relatório oficial veio admitir que quantidades de substâncias proibidas detectadas eram mínimas na maioria dos casos Fernando Veludo/arquivo

A ideia do dono de duas churrasqueiras do Cacém encheu-lhe as casas de gente, apesar de mal pagar o carvão: baixou o preço para um euro por frango assado. “Os que eu vendo não têm nitrofuranos”, assegurava, satisfeito, no meio de uma das maiores crises de segurança alimentar que Portugal alguma vez conheceu.

Catorze anos depois de o pânico se ter instalado, fazendo descer o consumo de carne de aves a níveis que fizeram perigar todo um sector e falir algumas empresas, os portugueses continuam a pagar os custos dessa crise. Segundo dados do Ministério da Agricultura, a factura emitida pela justiça até hoje, altura em que ainda há processos a correr em tribunal, ascende a perto de 12 milhões de euros, dez dos quais já pagos pelo Estado – que mandou abater de forma maciça frangos, perús e codornizes supostamente contaminados por um antibiótico proibido administrado na alimentação dos animais. Potencialmente cancerígeno para os humanos, a substância terá sido usada para prevenir doenças ou até promover o crescimento.

Os produtores dizem ter ganho todas as acções que desencadearam nos tribunais administrativos contra o Estado, para serem ressarcidos dos prejuízos. Só à Avibom foram pagos 4,6 milhões no final de 2015.

Não existem notícias de que a justiça tenha alguma vez conseguido provar em tribunal a contaminação, não obstante os 139 inquéritos abertos por ordem da Procuradoria-Geral da República entre 2003 e 2005, com base em análises feitas pelo Laboratório Nacional de Investigação Veterinária. Fonte da Polícia Judiciária, que na altura investigou o caso, explica que, mesmo nos casos em que havia vestígios do antibiótico nos animais, se revelava complicadíssimo saber se tinham sido os criadores ou os fornecedores de rações a introduzi-lo na comida ou na água. E a actuação da Inspecção-Geral das Actividades Económicas (IGAE), que foi a autoridade que esteve nas explorações em primeiro lugar, “deixava muito a desejar”, recorda o mesmo responsável. Nunca ninguém foi posto sob escuta, por exemplo, até porque nessa altura “a investigação era arqueológica.”

A verdade é que os inspectores das Actividades Económicas chegaram a queixar-se de que o então ministro da Agricultura, Sevinate Pinto, se precipitou ao anunciar, a 26 de Fevereiro de 2003, que tinha proibido vários aviários de colocar os seus produtos no mercado, por suspeita da presença de um composto cancerígeno nas aves. “Tornou inviável a nossa investigação. Andámos a trabalhar para o boneco, porque as pessoas [os produtores] deixaram de dar o produto, substituíram os animais ou trataram de os vender mais rapidamente”, chegou a dizer um dirigente sindical da IGAE.

Mesmo antes de mandar abater os animais o Governo proibiu a sua comercialização. Mas quando os inspectores chegaram a algumas das explorações pecuárias que tinham sido alvo do chamado sequestro, já as aves tinham voado para outras paragens. Sevinate Pinto chegou a falar numa rede de venda de nitrofurano em território nacional. “A culpa não vai morrer solteira”, assegurava o  ministro-adjunto do primeiro-ministro Durão Barroso, José Luís Arnault. Prova disso pareciam ser os processos-crime desencadeados em vários pontos do país, por indícios de corrupção de substâncias alimentares, e as toneladas de carne retiradas não só da cadeia de produção como das prateleiras dos supermercados.

Bruxelas pediu explicações a Portugal, dado o peso deste produto nas exportações. “A descoberta de uma substância proibida nos frangos portugueses é muito preocupante e não devia ter acontecido”, declarava o comissário europeu responsável pela Saúde e Protecção dos Consumidores, que ainda equacionou o embargo da carne de aves nacional. A garantia dos especialistas de que o real malefício dos nitrofuranos dependia da quantidade e frequência do consumo da carne contaminada não sossegava ninguém.

Sevinate Pinto morreu entretanto, mas o seu secretário de Estado-adjunto Frazão Gomes ainda hoje se lembra bem das noites sem pregar olho nos perto de três meses que durou a crise, das idas quase semanais ao Parlamento para prestar esclarecimentos e do fim-de-semana em que teve de tomar uma decisão sobre o abate maciço que lhe era proposto pelos serviços. Desapareceram 1,6 milhões de aves, incluindo patos. “Talvez tenha havido algum exagero, a esta distância é fácil dizê-lo”, justifica. “Mas na altura a Europa estava altamente vulnerável a este tipo de problemas, de que a crise das vacas loucas, que aconteceu antes, foi o expoente máximo. A verdade é que conseguimos impedir o fecho das fronteiras à exportação e restabelecer a confiança dos consumidores.”

A necessidade de restabelecer a confiança do mercado foi um dos argumentos que o Estado esgrimiu em tribunal para se furtar às indemnizações. Nada disto teria sucedido se os criadores não tivessem lançado mão do antibiótico proibido, foi alegado, e se a destruição das aves não tivesse sido feita em tão larga escala, o consumo nunca voltaria ao normal. Uma argumentação considerada inverosímil no mais recente acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul sobre o assunto, que data do fim de Março passado e estabelece uma indemnização superior a um milhão de euros para a Interaves, empresa do grupo Valouro que perdeu 691 toneladas de frangos, codornizes e perús congelados.

“As carnes não foram apreendidas por se ter constatado a sua contaminação por dioxina, mas apenas devido às medidas cautelares desencadeadas pelo Governo”, diz a sentença, sublinhando que os autos de apreensão da carne naquele aviário não aludem a qualquer infracção cometida pelo produtor – pelo que não se pode dar como provada a existência nitrofuranos.

Segundo um acórdão de 2006, do Supremo Tribunal Administrativo, o abate indiscriminado foi ilegal, porque a lei só permitia fazê-lo no caso de as aves estarem comprovadamente afectadas, tendo sido impossível testar todos os animais eliminados. Mas decisões mais recentes qualificam o que sucedeu como um acto lícito no âmbito dos poderes de prevenção sanitária e defesa da saúde pública do Estado – cujos custos não podiam, no entanto, ter sido assacados ao sector privado. Só que o Governo de Durão Barroso sempre disse aos avicultores não ter dinheiro para os compensar.

“O Estado perdeu todos os processos”, confirma o secretário-geral da Associação Nacional dos Centros de Abate e Indústrias Transformadoras, Manuel Lima. “Que eu saiba, nunca ninguém foi condenado por usar nitrofuranos. Em Espanha os resultados das análises eram semelhantes e nunca houve problemas.”

A resposta para o mistério pode estar num relatório que a Direcção-Geral de Veterinária fez logo em Outubro de 2003, em que admite que as quantidades de nitrofuranos detectadas na maior parte das amostras positivas eram de tal modo diminutas que seria quase impossível corresponderem a tentativas de melhorar a saúde dos animais. A tese mais plausível será afinal a da contaminação acidental das rações. “O facto de se tratar de uma substância proibida levou os laboratórios a entender ser desnecessário quantificar os teores de resíduos”, lê-se no documento, que explica que as decisões tomadas até 5 de Março não levaram isso em conta.

Segurança alimentar melhorou, constata a Deco

A segurança alimentar em Portugal nos últimos anos “sofreu uma evolução muito positiva”, considera Dulce Ricardo, coordenadora da equipa técnica alimentar da associação de defesa do consumidor Deco. “Cada vez encontramos menos resíduos de antibióticos”, refere.

Quando, em plena crise dos nitrofuranos, anunciou ter descoberto aquela substância na maior parte das amostras de perú que tinha comprado no mercado português, a Deco chegou a ser acusada de alarmismo pelo então ministro da Agricultura Sevinate Pinto. “Tivemos um papel preponderante na denúncia e demos imediatamente conhecimento do resultado das análises às autoridades”, recorda Dulce Ricardo, explicando que o efeito destes antibióticos potencialmente cancerígenos no organismo humano não é imediato, mas cumulativo. “Depende das quantidades ingeridas”, acrescenta.

Na mesma altura a associação de defesa do consumidor, que chegou a revelar o nome dos talhos onde tinha comprado o produto, participou num estudo europeu sobre carne de porco que também concluiu que dez das cem amostras nacionais continham nitrofuranos – o que só sucedia, além de Portugal, com a Grécia e com a Itália.

 

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