Vitória na Eurovisão: o que se andou para aqui chegar

A RTP venceu a Eurovisão fruto de um processo bem pensado que escolheu as pessoas certas para o lugar certo.

Esta semana é a semana em que a nação sente orgulho como coletivo após assistir a mais uma equipa nacional sair vencedora de uma competição internacional. Hoje é aquele dia do orgulho nacional, em que se sacode a poeira dos ombros e se diz em voz alta: “Somos muito bons!”

Temos razões para isso. Após 52 anos de expectativas, algumas vezes mais fortes, quase sempre com a certeza de não ir dar em nada, este foi o ano da certeza e a canção da Luísa Sobral venceu, “Portugal” venceu o Festival Eurovisão da Canção com uma maravilhosa interpretação do Salvador Sobral. Apesar de ser uma vitória que todos os portuguese podem considerar como sua, há que considerar o processo de transformação que teve de existir para que se tivesse tornado possível este resultado.

O processo inicia-se na ponderação e planeamento rigoroso por parte da organização. Optaram por convidar para a equipa uma lista de profissionais a que se chama na indústria “the talent pool”, constituída por elementos que acrescentam uma mais-valia criativa. Identificaram, através de um processo de investigação, quais os profissionais com meios de participação. Esses meios são espelhados pelos itens de portfólio e da disponibilidade técnica. Em vez de se abrir um convite geral aos artistas nacionais que pretendem participar no concurso, convidaram pessoalmente e especificamente os membros com mais meios dentro do enquadramento do tecido dos songwriters nacionais. A esses talentosos songwriters foi dada a possibilidade de escolherem a sua própria equipa, tanto a nível de produção como de interpretação. A definição de songwriter torna-se mais fácil de compreender pela diferença do conceito “compositor” e de “cantautor”. O conceito é moderadamente lato, mas de uma forma simplista significa um artista interdisciplinar que junta a composição à escrita criativa. Muitas das vezes também junta a parte de execução, e ainda a produção; o compositor pode ou não interpretar a sua obra.

Por partes. O conceito de composição está intrinsecamente ligado à música para orquestra seja erudita-clássica, erudita-contemporânea, e raramente também para banda de jazz dita big band. A limitação da definição prende-se com elitismos com base na práxis histórica, mas que não tem qualquer fundamento real e quotidiano, nem sequer valor académico em termos internacionais. Composição musical é apenas e só isso mesmo: junção de elementos musicais através da aplicação intencional e organizada de um conjunto de conhecimentos, ferramentas e técnicas, por forma à criação de uma obra original com significado conceptual ou emocional. Por isso, o bom “compositor” de canções tem de ter o domínio dos elementos de criação de melodia, harmonia e ritmo: a qualidade do seu trabalho criativo depende desse conhecimento.

Na vertente de escrita criativa, o songwriter tem de ser versado em poesia e nas técnicas de criação literária. No texto de uma canção, o escritor tem de criar uma história. Tem de contar a história de uma forma poética, escolhendo a forma de rima e estrutura que mais convém à composição e ao assunto abordado. Tem de ter o domínio da métrica e do imaginário, além das preocupações estéticas e éticas da mensagem. Mais ainda, saber juntar a melodia à letra e vice-versa. Assim, numa primeira abordagem, o songwriter é compositor e liricista. Contudo, o conceito de “liricista” também é um neologismo com alguma dificuldade de aceitação. Assumindo essa noção, o compositor-liricista é o criador que faz canções, de alguma forma pode-se aplicar o termo “cançonetista” mesmo que a sua definição no léxico português seja vaga.

Voltando à transformação que ocorreu neste processo do concurso. É interessante analisar o processo, pois existem artistas de renome internacional que utilizam processos semelhantes para obterem os seus hits. Assim, após a produção do projeto criar esse talent pool nacional de compositores-liricistas com portfólio e disponibilidade, deu-se a fase de brainstorming em duas fazes: uma passa-se dentro da equipa e a segunda passa-se entre equipas. Cada um dos cançonetistas escolheu a sua equipa para obter o tema finalizado e um intérprete, que na maior parte das vezes não foi o próprio. Seguidamente a esse brainstorming criativo dentro da própria equipa deu-se o confronto de ideias dos diversos cançonetistas até a equipa de organização chegar à conclusão de qual seria a ideia a apresentar: esse foi o processo observado no Festival da Canção RTP. Para a qualidade do processo de brainstorming não foram alheios todos os consultores externos que fizeram a avaliação das ideias apresentadas e chegaram à conclusão de qual seria a ideia certa. A partir daí, foi pegar na ideia e apresentar ao “cliente”, neste caso o público que assiste à Eurovisão.

O processo foi um sucesso, pois aparentemente assentou em premissas e hipóteses colocadas corretamente: os compositores portugueses têm talento. Se é verdade esta afirmação, por que é que não havia bons resultados na Eurovisão? Ou a premissa estava errada e os compositores portugueses não tinham talento ou não estava desenvolvido, ou ainda a premissa estava certa, mas os compositores que tinham o perfil necessário não se interessavam pelo Eurovisão. Passando à fase de “inquérito” sobre a segunda preposição, torna-se evidente que a organização conseguiu encontrar alguns dos potenciais candidatos à vaga de “cançonetista certo” com a canção certa. Funcionou o repto, pois alguns fortes candidatos responderam.

Se tivesse sido uma vaga de emprego para um cargo de executivo de topo para uma empresa multinacional, poderia dizer-se que o talent pool de recrutamento foi vasto e alguns candidatos saltaram à vista pela sua criatividade, engenho e, principalmente, pelo seu perfil profissional e académico. Ambas as características juntas são um bom indicativo de potencial para o sucesso em qualquer indústria. Como a afirmação da premissa colocada anteriormente não seria facilmente provada falsa com rigor académico (desafio qualquer um a provar, com rigor académico, que os songwriters portugueses não tinham talento antes de sábado á noite), o que mudou foi o perfil dos “profissionais” que aceitaram o desafio. Para não entrar em detalhe nos portfólios e CVs de todo o talent pool envolvido, convido a ponderar apenas sobre os traços gerais das características da equipa constituída pela songwriter Luísa Sobral e o intérprete Salvador Sobral: músicos dedicados à música criativa, que apostaram na sua formação específica.

A RTP venceu a Eurovisão fruto de um processo bem pensado que escolheu as pessoas certas para o lugar certo. Pessoas com talento, assim como milhares de songwriters nacionais têm, e com a formação específica adequada. A aposta na formação é essencial e vital para o desenvolvimento do talento.

Em 2015, num artigo para o jornal PÚBLICO, alertei para o facto de ter de existir a necessidade de uma mudança de paradigma em Portugal e que seria necessário olhar para os casos de sucesso na Europa e aprender com eles. Tanto naquela altura como agora, identificam-se como fundamentais dois princípios: a importância da formação específica adequada e a importância de investimento na conjetura adequada. Ainda nesse mesmo ano, e noutro artigo para o PÚBLICO, refiro que o talento nacional existe de sobremaneira e é inegável, mas falta o investimento por parte do Estado.

Deixando o recado: Portugal, agora que já tens a certeza que tens talento e que a formação faz a diferença, está na altura de investir ou ainda falta provar mais alguma coisa?

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