Filhos de Futscher Pereira fazem doação rara e oferecem papéis do pai

O Ministério dos Negócios Estrangeiros português existe há 300 anos, mas só tem 28 arquivos pessoais de diplomatas, alguns deles comprados às famílias. Num gesto raro em Portugal, os filhos de Vasco Futscher Pereira doaram ao Estado todos os papéis do pai. Juntos e em linha, são 15 metros de pastas

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Um aviso aos investigadores interessados na história da diplomacia portuguesa: o espólio de Vasco Futscher Pereira que acaba de ser doado pelos filhos ao Arquivo Histórico-Diplomático é grande: são 160 unidades, sobretudo caixas e dossiers, e ocupam 14 prateleiras.

Para além disso, este era um embaixador que gostava de escrever. Escrevia muitas vezes e escrevia longos textos.

Tanto que, em 1981, quando era embaixador em Washington, recebeu uma reprimenda, enviada de Lisboa pelo secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE). “Os telegramas devem ser sucintos”, explica João Hall Themido. “O meu caro Vasco não necessita, obviamente, conselhos de ninguém, mas como parece estar a pedi-los, direi que a informação dessa Embaixada originou, durante um período após a sua chegada aí, uma torrente de telegramas, aqui considerada excessiva.” Para que não restassem dúvidas, o secretário-geral — que enviara uma circular a pedir “moderação e bom senso” no uso da “via telegráfica, muito abusada e originando custos terríveis” ao Estado —, dá dois exemplos do estilo de Futscher Pereira que se pretendia travar: “O relato de uma conversa do [João Pedro] Ribeiro de Menezes com um colega chinês devia ter sido feito por ofício” e “vários telegramas eram demasiado longos”.

Do ponto de vista político, este é talvez o documento menos relevante de todo o espólio. Mas ajuda a levantar a ponta do véu sobre a personalidade do diplomata. Podem dizer-se várias coisas sobre isso. A mais transversal parece ser esta: Vasco Futscher Pereira “tinha um grande prazer em servir o país”, como diz o seu filho Bernardo, 58 anos, também embaixador, mas pensava de forma independente e dava a sua opinião sem papas na língua. Foi assim durante o Estado Novo (começou a ser diplomata em 1948) e na democracia (era ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Francisco Pinto Balsemão quando, em 1983, lhe foi diagnosticado um tumor cerebral). E aplicou o seu estilo de crítica frontal tanto às decisões sobre política externa, como às questões internas de organização das Necessidades. No caso da circular a pedir contenção nos telegramas, a ordem “não suscitou reparos”, escreve Hall Themido a 3 de Agosto de 1981. “Salvo o seu.”

“Reparos” foi coisa que Futscher Pereira fez em profusão nos seus 35 anos de diplomacia. Do duro mandato no Malawi, há dezenas. Como este: “Aproveito para lhe pedir desculpa pelo meu telegrama [anterior], perfeitamente sincero, mas admito também que talvez desabrido”, escreve em 1972, de Zomba, então capital do Malawi, a Calvet de Magalhães, secretário-geral do MNE. “Lamento o que, num momento de falta de serenidade, lhe disse. Mas a franqueza não me permitirá esconder-lhe que não lamento menos a decisão [do ministério].” E termina ironizando sobre a “estupenda qualidade de que é feito o nosso estômago” e o “triste estado [em que] se encontra a fibra dos Mouzinhos”.

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O embaixador Vasco Futscher Pereira era ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Francisco Pinto Balsemão quando, em 1983, lhe foi diagnosticado um tumor cerebral cortesia vera futscher pereira/ "retrovisor, um álbum de família (rui costa pinto edições)

Os “Futscher boys

O actual ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, não tem dúvidas. “Vasco Futscher Pereira foi um dos maiores embaixadores portugueses do século XX”, resumiu durante a cerimónia de assinatura dos autos de doação, na Biblioteca da Rainha, no MNE, a 23 de Março. Sem surpresa, a sala estava cheia. O embaixador José de Freitas Ferraz, director do Instituto Diplomático, contou como o conheceu. “Eu estava na Repartição Política da África e Ásia, com vários colegas à volta, e de repente entra alguém e todos se levantam. Eu também me levantei. E ele perguntou: ‘Quem é o Freitas Ferraz?’ ‘Sou eu’, respondi. ‘Pode vir cá fora?’ Saímos e ele disse: 'Fui nomeado embaixador em Washington e gostava que viesse comigo'.” Freitas Ferraz acabara de se candidatar a um posto no estrangeiro e colocara Cabo Verde como primeira preferência. Tinha 31 anos, queria começar por fazer um posto classificado de hardship antes de ter filhos. Washington não estava na sua lista. Perante a hesitação do jovem diplomata, Futscher dispara:

— Tem alguma coisa contra os americanos?
— Não.
— Tem alguma coisa contra mim?
— Não.
— Não fala inglês?
— Falo.
— Muito bem, estamos conversados.

“Considera-te em Washington”, disse-lhe de imediato um colega mais velho, numa previsão 100% certeira. “Mal chegámos, ele disse que uma das prioridades seria que passassem na embaixada, por ano, entre mil a dois mil opinion makers. Percebi rapidamente que o Futscher Pereira era diferente de todos os diplomatas que eu tinha conhecido até aí — e que conheceria nos anos seguintes.” Com o tempo, concluiu também que “era o mais completo”: “Era inteligente, tinha uma enorme capacidade de análise, escrevia muito bem e era extremamente gregário e simpático. Foi um extraordinário diplomata e um grande servidor público.”

Foi nesse ano de longos telegramas sobre a América de Ronald Reagan que Freitas Ferraz ganhou uma distinção original. Passou a ser um dos “Futscher boys”, como alguém inventou na altura e um jornalista “fixou” numa notícia num jornal — um pequeno grupo de colegas mais jovens nos quais o embaixador depositava total confiança e que procurou ter ao seu lado nos seus diferentes postos. Desse grupo fazem parte José César Paulouro das Neves, Vasco Valente, Fernando Andresen de Guimarães e José Caetano Costa Pereira. Anos mais tarde, e já reformado, Paulouro das Neves (1937-2015) ainda citava o seu antigo chefe numa entrevista ao Jornal do Fundão: “Quando eu estava em Brasília, no tempo do PREC, aprendi com o embaixador Futscher Pereira que um diplomata tem o dever de dizer a verdade sem ofender as autoridades do país onde está, e de dizer a verdade ao Governo do seu país correndo o risco de o ofender.”

O filho Bernardo, literalmente um “Futscher boy”, admite: “Nós tínhamos uma visão dele um pouco mitificada porque não o víamos muito. Quando chegava, era como se o mundo entrasse em casa. Sempre muito elegante e com sentido de humor. Teve uma vida muito atribulada, mas nunca se deixou abater. E tinha sempre tempo para tudo. Dizia: ‘Eu não ando com pressa na vida.’ E quem o conheceu sabe que ele andava sempre atrasadíssimo.”

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Hoje, como no início da carreira de Futscher Pereira, os telegramas rosa são os recebidos e os telegramas verdes são os expedidos. O espólio ocupa 14 prateleiras do Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros daniel rocha

Uma doação raríssima

Os seus papéis — e são milhares — estiveram na biblioteca da casa da família, na Rua dos Caetanos, no Bairro Alto, em Lisboa, durante os últimos 30 anos. A filha Vera foi a principal guardiã. “Foi ela quem cuidou deles, quem os arrumou e quem os usou para escrever o livro Retrovisor – Um Álbum de Família [2009]. À Vera se deve o ministério ter recebido um arquivo tão bem organizado”, contou o irmão na cerimónia de entrega. “O meu pai tinha fama de desorganizado, mas isso era uma crítica injusta. Toda a vida transportou de um lado para o outro as notas, as cartas, os documentos e os recortes. E sempre foi muito cuidadoso em guardar os seus papéis.”

Vera Futscher Pereira, 64 anos, até há pouco intérprete de conferência no Parlamento Europeu e na Comissão Europeia, conta: “Os papéis estavam em caixotes na biblioteca e não estavam assim tão desarrumados quanto isso. Quando o meu pai morreu, pusemos tudo numa grande arca em sacos de plástico com naftalina. E assim estiveram mais ou menos 20 anos.” Mais tarde, quando se dispôs a arrumar tudo, pensou: “Se meto isto em caixas, nunca ninguém vai saber quem são estas pessoas que estão nas fotografias, é um arquivo morto. A pensar nos meus sobrinhos, decidi fazer um álbum. Mas quando comecei a ler e percebi que o meu pai escrevia tão bem, pensei que devia dar voz directa a alguns dos telegramas e fazer um livro que não fosse apenas para a família.” Demorou sete anos. “Não li tudo, li um bocadinho de cada posto. Mas vi tudo, papel a papel, e arrumei o espólio por dossier e por ano.”

“São raras as ocasiões em que a família ou o próprio entregam a totalidade do seu arquivo ao ministério”, diz Margarida Lages, directora do Arquivo e Biblioteca do Instituto Diplomático do MNE. Nas últimas décadas, o instituto recebeu alguns espólios e comprou outros em alfarrabistas. Mesmo assim, só tem 28 arquivos pessoais. Cinco foram comprados (os de Francisco José de Horta Machado, séc. XVIII; João Andrade Corvo e Veiga Beirão, séc. XIX, e Armindo Monteiro e Eduardo Brazão, séc. XX) e 23 foram oferecidos. Mas algumas das doações são mais do que simbólicas. Um dos “arquivos” pessoais oferecidos inclui apenas três álbuns de fotografias e outro limita-se a diplomas de condecorações, um livro de Direito e um filme de uma cerimónia pública. A doação dos filhos de Futscher Pereira também é especial sob um terceiro aspecto: o ministério só tem três arquivos de diplomatas que foram ministros. “Augusto Vasconcelos [1867-1951], Armindo Monteiro (uma pequeníssima parte) [1896-1955] e Andrade Corvo [1824-1890]”, diz Lages. De anos recentes, não têm nenhum.

“Doar é um gesto muito nobre”, sublinhou Santos Silva na cerimónia na Biblioteca da Rainha. “Quando queremos valorizar uma profissão, temos de estudar como os melhores de nós exerceram essa profissão.” Estudar este espólio, disse o ministro que é ele próprio um académico, vai permitir ver “como se exerce a profissão de diplomata, como se cresce e se amadurece passando pelos postos C., e como se faz política externa em Portugal — que tem sido sempre um pouco singular”. Foi justamente isso que a filha Vera mais gostou de descobrir ao mergulhar no universo profissional do pai: “Ver o que realmente faz um diplomata. Tem-se aquela ideia do croquete. Como a história da menina a quem perguntam: ‘O que faz o teu pai?’ e ela responde: ‘É diplomata e faz discursos em francês.’ Aqui percebe-se que ser diplomata é sobretudo a descrição e a análise do que se está a passar nos países. Foi ver os bastidores de uma profissão que é tão secreta.”

Abrir a possibilidade de consulta aos investigadores vai “enriquecer o conhecimento das relações diplomáticas de Portugal com diversos países e recuperar algum conhecimento sobre a questão colonial”, diz a directora do Arquivo. Por tudo isto, Margarida Lages está entusiasmada: “Espero e acredito que este acto solene da família desperte noutros diplomatas a vontade de depositarem aqui o seu arquivo.”

Porquê agora?

Para os Futscher, o tempo impôs a decisão de doar agora. Porque passa, inexoravelmente, e porque falta — mesmo quando não temos pressa. Chegados a 2017, os filhos concluíram duas coisas. A primeira é formal: já passou o período de reserva de 25 anos, a partir do qual os “documentos sensíveis” do pai podem ser mostrados. A segunda é pessoal: estavam sentados em cima dos papéis. Em momentos separados e a milhares de quilómetros de distância, ela em Lisboa, ele em Dublin, os dois irmãos usam exactamente a mesma expressão. “Estava sentado em cima dos papéis quando já há historiadores interessados em ver”, conta Bernardo. “Até que percebemos que estávamos aqui sentados em cima dos papéis e que assim os papéis morrem”, diz Vera. O filho-embaixador tem uma razão extra: “Sendo eu próprio investigador nas horas vagas [é autor de A Diplomacia de Salazar (1932-1949), de 2012, e Crespúsculo do Colonialismo – A Diplomacia do Estado Novo (1949-1961), que acaba de ser lançado], não me sentiria bem perante os meus colegas académicos dispondo daquele espólio e não o pondo à disposição deles também. Se o meu pai guardou isto tudo, é porque achava que os documentos tinham valor histórico. Não era apenas para nós podermos saber o que ele tinha feito como diplomata.”

Nunca pensaram vender. “O meu pai dedicou a vida ao serviço público. Fazermos disto um negócio não nos pareceu… necessário. Assim é mais simpático”, diz o filho. Além disso, “o Arquivo Diplomático tem poucos meios e é muito importante”. Concluíram que “o dever era partilhar”. Margarida Lages lembra-se bem desse dia: “Exultei de alegria!”

Vasco com Margarida e os filhos Cristina, Vera e Bernardo em 1961 cortesia vera futscher pereira/ "retrovisor, um álbum de família (rui costa pinto edições)
No Brasil, o embaixador conheceu Maria Lúcia Pedroza, que se viria a tornar sua mulher cortesia vera futscher pereira/ "retrovisor, um álbum de família (rui costa pinto edições)
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Vasco com Margarida e os filhos Cristina, Vera e Bernardo em 1961 cortesia vera futscher pereira/ "retrovisor, um álbum de família (rui costa pinto edições)

A decisão final foi empurrada pela encomenda do IPRI, que no ano passado pediu ao embaixador-filho um texto sobre o pai para o Dicionário Biográfico dos Ministros e Secretários de Estado dos Negócios Estrangeiros, coordenado por Nuno Severiano Teixeira (com edição da Dom Quixote e do IPRI e apoio do MNE), que está em preparação. Nesse texto, revela que por volta de 1982 o pai começou a preparar uma candidatura a secretário-geral da NATO, que não chegou a materializar-se por causa do tumor. Percebeu então que não ia ter tempo para estudar a sério o espólio do pai e que estava na hora de o libertar.

Ninguém estudou a documentação em profundidade, mas Bernardo Futscher Pereira identifica quatro momentos da vida do pai como diplomata que poderão ser do interesse de investigadores. Somados, são sete anos e um dia. Os quatro anos do Malawi (1969-1973), os dois anos em que Portugal foi pela primeira vez membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU (1979-1980), “um momento simbólico de reabilitação internacional”, e o seu breve mandato como ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Francisco Pinto Balsemão (1982-1983), interrompido pela doença. O dia é o 25 de Abril de 1974.

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Os filhos, Vera e Bernardo Futscher Pereira sentiram que tinham "o dever de partilhar" o espólio do pai. Para Margarida Lages, directora do Arquivo e Biblioteca do Instituto Diplomático do MNE, foi "uma alegria" daniel rocha

Na ONU, uma marca em Timor

Em 1964, chegado a Karachi (Paquistão), depois de postos feitos em Rabat (Marrocos), Leopoldville (capital do Congo Belga) e São Francisco (EUA), Vasco Futscher Pereira, então com 42 anos, escreve ao seu amigo Gonçalo Caldeira Coelho, também diplomata. “Não ambiciono Paris, nem Londres, nem nenhum posto desse tipo. Todos são postos caros onde me seria muito difícil viver com a família, e nenhum oferece a oportunidade, que é a única coisa que ambiciono, de me valorizar num posto ingrato, difícil, trabalhoso, com autonomia, e que me permita um contacto directo com o Ministério.”

Em 1980, no entanto, Futscher Pereira estava a fazer tudo isso em Nova Iorque, como embaixador junto das Nações Unidas. É nesse Verão que Diogo Freitas do Amaral, vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros, lhe escreve uma carta ambiciosa. Por razões de segurança, a missiva não segue pelos canais normais do ministério, que são confidenciais, mas não são blindados. Era demasiado secreta. Marcar a carta com um PESSOAL E SECRETO, assim mesmo, com maiúsculas sublinhadas, significava que não seriam feitas cópias, no despacho normal, nem para o secretário-geral, nem para os directores-gerais do ministério. Era como se Freitas do Amaral e Futscher Pereira estivessem a conversar a sós.

A ideia do ministro era ao mesmo tempo muito simples e muito complicada: Futscher Pereira devia encontrar uma forma de conversar com o embaixador da Indonésia nas Nações Unidas. Cinco anos depois da invasão e anexação de Timor-Leste pela Indonésia, Lisboa e Jacarta nunca tinham discutido o problema.

Freitas do Amaral define as balizas. Seria apenas um “encontro exploratório” e “não o primeiro passo de um processo”, seria “meramente informal e realizado a título pessoal”, não poderia significar o reconhecimento da integração de Timor na Indonésia e teria como principal objectivo avaliar o “estado de espírito actual da Indonésia”. O ministro tem uma manobra táctica na manga: para que os indonésios não soubessem que a ideia era do governo português, Futscher Pereira deveria pedir a “um terceiro país, nosso amigo, que tomasse ele a iniciativa de promover o encontro” — e propõe a Holanda. “O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Holanda mostrou o maior interesse em ajudar-nos e ofereceu-se para, se eu lho pedisse, instruir o seu Embaixador na ONU no sentido de dar o tal jantar.” No passado, já tinha sido a Holanda, antigo colonizador da Indonésia, a receber mensagens discretas de Jacarta. Os directores-gerais de Negócios Políticos dos dois ministérios tinham falado e o indonésio dissera ao holandês, em Abril desse ano, que o seu país “estava interessado em negociar com Portugal sobre Timor”, escreve Freitas do Amaral.

Os dois lados, Portugal e Indonésia, queriam conversar, mas em 1980 não sabiam como. Um primeiro encontro estivera agendado no ano anterior, mas fora cancelado nas vésperas pelos indonésios, que não gostaram de ouvir o que a primeira-ministra Maria de Lourdes Pintasilgo disse na Assembleia Geral das Nações Unidas.

Agora, corria a ideia de que Jacarta teria aspirações à liderança do movimento dos Não-Alinhados e precisava de “apresentar uma imagem sem mácula”, explica o ministro. “Se isto é verdade, é ponto que joga a nosso favor.” A única coisa que Lisboa sabe é que Jacarta tem uma ideia diferente da que Portugal pretende. Os indonésios diziam que queriam “atestar a autodeterminação do povo timorense” nas eleições nacionais de 1982. “É uma hipótese a explorar”, diz Freitas do Amaral ao embaixador. O ministro está preocupado com fugas de informação. “Importa que o encontro possa ser da maior discrição e que se procure acordar com o Embaixador da Indonésia a forma de o desmentir, se se tornar conhecido (por exemplo, ‘apenas conversa informal por ocasião de um jantar na embaixada de...’)”. Nesta carta de 31 de Julho de 1980, Freitas do Amaral despede-se insistindo no secretismo da missão: qualquer dúvida, deve ser tratada “por telefone comigo ou por telegrama secreto e pessoal para mim”.

Futscher Pereira responde a 7 de Agosto, depois de pensar “longamente no melindre de vários aspectos da iniciativa”. Em nove páginas, o embaixador — que estava a dois anos de ser ele próprio ministro dos Negócios Estrangeiros — diz que o colega holandês, Hugo Scheltema, é um homem de confiança, mas que Portugal deve escolher o embaixador da Bélgica. Por duas razões: desconfia que o leak (a expressão é sua) sobre a tentativa anterior para um encontro bilateral partiu da Holanda e, além disso, quando Jacarta dissera que queria conversar, Lisboa respondera que preferia fazê-lo “durante a Assembleia Geral da ONU”, meses depois. Poderia “parecer estranho aos olhos de DJakarta [sic] que o Embaixador da Holanda” tivesse, do nada, uma ideia nova. “Presumo, está claro, ser do nosso interesse tentar convencer os indonésios de que a iniciativa não parte de nós.” Futscher Pereira acha que a Holanda é um “interlocutor cuja iniciativa pessoal os indonésios não poderão deixar de olhar como suspeita ou pouco crível”. Além disso, o colega belga, André Ernemann, tinha, “em várias ocasiões, tentado convencer o Representante Permanente da Indonésia a conversar comigo informalmente”, outro factor favorável. “O indonésio, evasivo, mostrou-se sempre relutante, invocando que o seu Governo reagiria provavelmente mal a qualquer sugestão nesse sentido”, mas ser o belga a propor, argumenta, “talvez pudesse até levar o Embaixador da Indonésia a crer na espontaneidade do seu oferecimento”.

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Segredo dentro do segredo

Tal como o ministro, Futscher está preocupado com o sigilo, até porque não acredita que um só encontro permita discutir tudo o que está em cima da mesa — e quanto mais encontros houver, maior o risco de fuga de informação. Mas usar o canal de comunicações pessoais pode vir a criar um problema maior no futuro. Em caso de “quebra do segredo”, o ministério terá de encontrar respostas para novas perguntas: “Como começaram tais conversações, quem decidiu que elas fossem encetadas e porque é que, tratando-se de uma questão do maior interesse e importância no plano nacional, e de indubitável projecção internacional, se optou por procurar esconder completamente uma iniciativa que o Governo era livre de tomar, mais ainda: que até era seu dever tomar.”

A sua proposta é criar-se um segredo dentro de um segredo. Doravante, os dois prosseguiriam a discussão nos canais secretos, mas não pessoais, e a missiva que ele viesse a enviar ao ministro sobre um encontro com os indonésios seria escrita “como se [a ideia do jantar] não tivesse sido da iniciativa do Governo […] e o Governo apenas tivesse tomado a decisão política de aceitar a concretização daquele encontro a título exploratório, como reacção a uma sugestão feita por um país amigo”. Prático, o embaixador propõe até a “fórmula”: quando o encontro estivesse confirmado, ele enviaria ao ministério “um telegrama secreto relatando a V.Exa. que o meu Colega X me propusera um encontro informal e exploratório sobre o problema de Timor, a realizar-se em sua casa, entre mim e o Embaixador da Indonésia”. O objectivo, explica a seguir, seria evitar “qualquer risco político ao Governo”.

A 25 de Agosto, Freitas do Amaral envia nova carta pelo canal PESSOAL E SECRETO, como escreve no canto superior esquerdo. O ministro concorda que se envolva o embaixador belga e se use a fórmula proposta para “o problema do sigilo”, e chama a atenção para a importância de não “dar a impressão de que vamos falar apenas com a Indonésia”. Pede mesmo que Futscher Pereira dê “publicidade a encontros com alguém da Fretilin na mesma altura do jantar”. Há uma alusão explícita aos “vários desentendimentos” entre São Bento e Belém sobre como dividir as competências em relação a Timor, mas Freitas do Amaral informa que “o Governo entende que este encontro meramente preliminar e informal se pode fazer sem o prévio acerto com o Presidente da República”, Ramalho Eanes.

"Irregressível", a previsão que falhou

A 2 de Setembro, vem a resposta. Há “inesperados desenvolvimentos” a relatar de Nova Iorque: 1) O embaixador belga teve uma trombose e estará três meses de baixa. 2) Por “um acaso — se é que de acaso se tratou — [Futscher reuniu-se] com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia durante um jantar oferecido pelo Presidente da República do Bangladesh ao secretário-geral”. 3) O ministro disse-lhe que “instruiria o seu Embaixador no sentido de entrar em contacto comigo”.

“Lembro-me perfeitamente dessa primeira carta”, diz Diogo Freitas do Amaral agora, 37 anos depois. “Quando cheguei ao ministério em 1980, não havia nenhum documento orientador sobre a política portuguesa em relação a Timor e senti a necessidade de o fazer”, conta. Dias depois desta correspondência, é aprovada em Conselho de Ministros uma deliberação na qual se decide que Portugal vai propor conversações à Indonésia com a expressa ressalva de que tal contacto não envolverá o reconhecimento da ocupação. “Os refugiados de Timor no Jamor eram um problema agudo e que estava a ser usado contra nós pelo PS e pelo PCP. E eu não queria ir para eleições sem termos uma política clara para Timor.” As eleições foram a 5 de Outubro de 1980. O Conselho de Ministros de 12 de Setembro terá sido o último antes de a campanha eleitoral começar. Na sua leitura, as razões para o secretismo eram óbvias: “Partindo de posições completamente antagónicas, não sabíamos se o encontro não daria em nada. Não eram negociações. Eram contactos muito prévios. Manda a prudência que nestes casos não se anuncie que se vai falar. Além disso, não queríamos elevar demasiado as expectativas, porque tínhamos indicação de que os indonésios nunca iriam ceder na sua posição.”

E o jantar aconteceu? Freitas do Amaral não se lembra. E o espólio não parece dar resposta.

Uma coisa fica clara: tal como a maioria dos diplomatas portugueses na altura, Futscher Pereira não acreditava que Timor pudesse alguma vez tornar-se independente. Num telegrama de 1978, escreve de Nova Iorque que, numa conversa com o homólogo australiano, lhe dissera que, em Portugal, “considerávamos também irregressível a situação criada em Timor” e que, perante a hipótese de a Austrália fazer um reconhecimento de jure da integração de Timor, “Portugal não seria certamente o juiz nem seria certamente hostil a uma decisão da Austrália ditada pelo seu interesse nacional”. Futscher vê aliás a vantagem, para Portugal, que haveria em encontrar um gesto que agradasse à Austrália, que assim se tornaria “mais sensível ao nosso pedido de apoio para a candidatura ao Conselho de Segurança”.

Na avaliação de Margarida Lages, os dois anos como embaixador na ONU são uma das partes mais importantes do espólio. “Não existia no MNE uma colecção tão completa”, diz a directora do arquivo.

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Vasco Futscher Pereira com o casal Rebelo de Sousa (o pai do actual Presidente da República era então governador geral de Moçambique) e o Presidente do Malawi,Hastings Banda cortesia vera futscher pereira/ "retrovisor, um álbum de família (rui costa pinto edições)

Malawi, quatro "anos tão mal gastos”

Nova Iorque foi seguramente menos frustrante do que o Malawi, o seu primeiro posto como embaixador. Em 1969, o Malawi tinha muita importância para Portugal porque era um dos poucos — senão o único — aliados na África negra. Nos dez anos anteriores, 31 ex-colónias tinham declarado a independência. De Lisboa, por contraste, não havia sinais de abertura. Cada vez mais isolado na comunidade internacional, Portugal mantinha colónias e tinha apenas dois amigos no continente — a África do Sul e a Rodésia, governados por regimes brancos. Entre os vizinhos que faziam fronteira com as principais colónias portuguesas, Lisboa tinha relações difíceis com o Congo e a Zâmbia, e não tinha relações com a Tanzânia.

“O Malawi era o país da África negra com quem tínhamos melhores relações”, diz Bernardo Futscher Pereira. “E era tido por Salazar como um pivot na estratégia do Governo português para a África Austral”, explica Luís Barroso, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, que estudou a relação Portugal-Malawi durante o Estado Novo para a sua tese de doutoramento de 2012, para a qual consultou alguns aerogramas e notas oficiais de Futscher Pereira. “Levada a cabo com relativo sucesso entre 1964 e 1968, a estratégia tinha como objectivo resistir à descolonização", explica ao PÚBLICO.

Salazar queria que Hastings Kamuzu Banda, Presidente do Malawi, hostilizasse a Frelimo (com quem as tropas portuguesas estavam em guerra desde 1964) e não permitisse a sua instalação no país. Em troca, prometia duas coisas: facilidades de transportes a partir de Moçambique, coisa que, por não ter costa, precisava para exportar e importar; e segurança contra os opositores. O Presidente do Conselho português pretendia também publicitar a ideia de que o Malawi era “um exemplo da boa vontade portuguesa em colaborar com países africanos negros”.

Jardim e Pombeiro, amigos do regime

A estratégia, no entanto, fracassou. Talvez o factor mais importante tenha sido a “falta de direcção estratégica de Lisboa na luta contra-subversiva, onde várias pessoas pretendiam assumir papéis relevantes, como o engenheiro Jorge Jardim e o general Kaúlza de Arriaga”, diz Luís Barroso, neste momento em comissão de serviço num quartel-general da NATO na Holanda. “Em 1969, a nomeação de Futscher Pereira para o Malawi foi decidida para que Marcello Caetano pudesse ter algum controlo na situação e para facilitar a relação com a Zâmbia, que na altura estava quase perdida por causa da aproximação à Rodésia e à África do Sul. Sendo o único embaixador num país negro, é muito provável que ele tenha sido designado para evitar deslizes e manter o rumo iniciado por Salazar. Mas é curioso notar que, naquele momento, Portugal começava a perder influência junto do Presidente Banda. Por essa razão, o espólio do embaixador pode ajudar-nos a compreender melhor este período decisivo para Portugal na África Austral.”

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“Jardim, o homem-de-mão e agente especial de Salazar para tudo o que era complicado em África — e que respondia directamente a Salazar —, era muito próximo do Presidente Banda", recorda Bernardo Futscher Pereira dr

Sublinhe-se o óbvio: o cenário era complexo e escorregadio. Banda, “pai do Malawi”, um médico que estudara na Europa, permitia que os guerrilheiros da Frelimo fizessem infiltrações e usassem o seu território como retaguarda, e fazia constantes protestos formais contra as incursões das tropas portuguesas no seu território. “Ainda me lembro de ir num carro com os guerrilheiros da Frelimo à minha frente!”, conta o embaixador reformado Fernando Andresen de Guimarães, um dos famosos “Futscher boys”. Isto, ao mesmo tempo que, “embora sem o assumir claramente”, Banda se tivesse aliado a Portugal, diz Bernardo Futscher Pereira. Era um equilíbrio difícil para Banda, mas “para o meu pai também não foi fácil”.

Jorge Jardim (1919-1982) é em boa parte responsável por o embaixador ter escrito, já no fim do seu mandato, que aqueles tinham sido “anos tão mal gastos”. “Jardim, o homem-de-mão e agente especial de Salazar para tudo o que era complicado em África — e que respondia directamente a Salazar —, era muito próximo do Presidente Banda”, lembra o filho. A sua história foi contada por José Freire Antunes em Jorge Jardim – Agente Secreto (Bertrand Editora, 1996). Era tão próximo de Banda que foi nomeado cônsul honorário do Malawi na Beira, Moçambique. De Jardim há relatos de que transportava sempre uma cápsula de cianeto para o caso de “cair nas mãos dos inimigos”.

A trabalhar no meio desta ambivalência, o embaixador viu-se enredado num ciclo contínuo de desautorizações e humilhações “vexatórias”, e foi repetidamente ultrapassado pelas iniciativas da diplomacia paralela de Jardim. “Faltaram-me agora o tempo, a serenidade e a energia” para explicar porquê, desabafa em 1972 numa carta a Calvet de Magalhães.

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Futscher Pereira, MNE no Governo de Pinto Balsemão, com Robert Mugabe durante a visita oficial ao Zimbabué daniel rocha

“O contragolpe preventivo”

A 17 de Abril de 1973, o diplomata João Matos Proença (1938-1990) encontrou as três coisas que, no fim, o seu antecessor já esgotara. Encarregado de negócios interino em Zomba há apenas cinco meses, o jovem diplomata escreve um longo Apontamento sobre um possível golpe de Estado no Malawi, que envia para Lisboa com a classificação de MUITO SECRETO. As dez páginas são de análise política pura e dura e é notório o esforço do autor para expurgar vestígios da sua leitura pessoal sobre os protagonistas. Mas no Malawi nos anos 1970, já sabemos, isso não era possível.

Matos Proença parece morder a língua enquanto escreve. Na sua avaliação, e ao contrário da opinião de outros, um golpe de Estado não é nem “iminente” nem “muito provável num futuro próximo”. Ele sabe, no entanto, que “algo terá já sido feito com vista a detonar o contragolpe no momento que parecer mais indicado” — e ele é claramente contra.

O novo encarregado de negócios acredita que “ainda há possibilidades de apoiar o Presidente Banda”; que o contragolpe “muito dificilmente poderá travar o avanço do nacionalismo africano”, e que é “discutível” que reduzisse o apoio que o Malawi dá à Frelimo. Além disso, levaria à morte do Presidente Banda, “uma perda a evitar a todo o custo”, e à “destruição implacável do Eng. Jardim”. “Sem entrar em detalhes acerca das qualidades do juiz responsável pela detonação do contra-golpe, levantarei apenas a seguinte questão: o que acontecerá ao futuro das nossas relações se, por inconfidência forçada, algum local denunciar a articulação de um contra-golpe inspirado por Portugal [?] Para esta pergunta existe apenas uma resposta: o corte imediato de relações oficiais e oficiosas!”

Matos Proença antecipa três cenários para uma intervenção portuguesa: 1. ajudar num “golpe de Estado preventivo” (“o mais perigoso passo”, que tornaria real o “risco de sermos forçados a encerrar as portas da Embaixada e tocar a finados”); 2. ajudar num contragolpe após um golpe contra Banda (levando à “implantação definitiva do estigma do imperialismo português”); e 3. a omissão portuguesa perante um golpe real.

Tudo isto para chegamos ao coração da carta. “A quem pertence a tarefa de juiz da situação com poder para desencadear o contra-golpe?”, pergunta o novo chefe da embaixada de Zomba. “Temo dizê-lo que o Eng. Jardim se tenha arrogado essa qualidade.” Já no fim, o diplomata insiste: “Quem avaliará as circunstâncias concretas que possam justificar um contra-golpe? Alguém conhecidamente isento e independente ou alguém arvorado em juiz em causa própria submetido à pressão de grandes interesses pessoais que visa proteger a todo o custo?” Matos Proença ainda não está satisfeito: “E mais: será difícil entender o contra-golpe fora do contexto de uma solução de desespero. Encontrando-se Eng. Jardim e P. de Souza assustados pelos riscos inerentes às suas lealdades — que se encontram em vias de destruição —, que outro recurso poderão advogar senão o contra-golpe para evitar a sua própria aniquilação?”

O Souza aqui citado é Jaime Pombeiro de Souza, há muito conhecido nos meios diplomáticos por ter a “qualidade ambivalente” de ser ao mesmo tempo cônsul de Portugal e “conselheiro” do primeiro-ministro do Malawi, “tendo por trás o Eng. Jorge Jardim”, como se lê num telegrama que Fernando Silva Marques, antecessor de Futscher Pereira em Zomba, enviara em Outubro de 1965 (em nota “Pessoal e Muito Secreta”) ao ministro dos Negócios Estrangeiros Franco Nogueira.

Mais tarde, é Futscher quem denuncia também o facto de Pombeiro de Souza ter, em cima de tudo isto, a função de “‘homem de negócios’ e agente no Malawi da Firma 'Promoções Jardim & Cª', sociedade em nome individual com sede no Dondo (Moçambique), e cuja actividade — financiada pelo Ministério da Defesa e pelo Governo Geral de Moçambique à razão de cerca de 20.000 contos por ano — se dedica ao chamado ‘ramo patriótico’”.

A 6 de Novembro de 1972, a uma semana de deixar o Malawi, Futscher Pereira escreve a Calvet de Magalhães, naquele que terá sido um dos últimos gestos como embaixador no país. Começa num estilo bem seu: “Muito lamentarei se o ofício que hoje remeto, propondo pura e simplesmente a demissão do Sr. Pombeiro de Souza do título e funções consulares que aqui ocupa, em vez de facilitar a posição do Ministério no presente ‘imbróglio’, for, ao contrário, torná-la mais difícil.”

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No 25 de Abril de 1974, Futscher Pereira está como embaixador em Bona. Telefonou para Lisboa a pedir instruções. "Como o ministério não desemburrava, ele avançou", recorda o filho, Bernardo. A reprimenda de Lisboa não se fez esperar daniel rocha

“Indisciplina” a 26 de Abril

“O Malawi foi o primeiro posto do meu pai como embaixador e talvez o mais difícil”, resumiu o filho na cerimónia de doação. “Mas penso que o meu pai se saiu bem, porque foi de lá para a Alemanha, onde se transformou numa figura pública da noite para o dia.”

No 25 de Abril de 1974, Vasco Futscher Pereira era embaixador em Bona. “Ficou feliz com o 25 de Abril e sentiu que não podia não dizer nada”, diz o filho. “Tentou convencer o MNE a tomar uma posição e a reconhecer a Junta, mas no MNE diziam-lhe que não tinham ainda falado com a Junta e que aguardasse.” Futscher Pereira telefonou quatro vezes para Lisboa a pedir instruções ou uma linha de orientação. Duas no próprio dia 25, mais duas na manhã de 26. “Sentiu que não dizer nada seria visto como a embaixada estando alinhada com o Marcello. Como o ministério não desemburrava, ele avançou. Na sexta-feira [26 de Abril], sentiu que não podia estar calado mais tempo, que isso iria destruir a reputação da embaixada e era pernicioso para o país. Foi ao Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão e fez uma declaração, dizendo que reconhecia o novo regime e a legitimidade da Junta de Salvação Nacional para falar em nome de Portugal”, conta o filho. O que mostra sobre o pai? “Que era capaz de assumir responsabilidades e que, em situações críticas, não ficava paralisado. Um diplomata cumpre instruções, mas, em certos casos, não pode ficar calado.”

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A 27 de Abril, a tomada de posição do embaixador português em Bona é notícia no Diário Popular

A 27 de Abril, é notícia no Diário Popular com o título “O embaixador Futscher Pereira pede o apoio do governo de Bona à Junta de Salvação”. A reprimenda de Lisboa não se faz esperar. Às 14h, chega à embaixada de Bona um telegrama assinado “Nestrangeiros”: “Lamentamos Vexa tenha agido contrariamente instruções lhe foram dadas. Nas circunstâncias presentes acima quaisquer considerações importa todos servidores do Estado mantenham maior serenidade e disciplina, mormente aqueles desempenham altas funções, a fim objectivos Junta Salvação Nacional sentido normalização vida País se possam levar a cabo sem dificuldades.” Sem pressa, já sabemos, o embaixador responde no dia seguinte, num longo telegrama, coisa que também não era novidade no MNE desde pelo menos Marrocos, 20 anos antes.

O embaixador achava “desaconselhável que Embaixada mantivesse atitude silenciosa”, explica no telegrama para Lisboa, pois seria interpretado por Bona como “nossa relutância apoiar nova situação política criada em Portugal”. Antes de pedir audiência junto das autoridades alemãs, dissera ao MNE que se “reservaria a possibilidade de agir diferentemente da linha de orientação” — que era esperar. “Sob minha exclusiva responsabilidade pessoal”, acrescenta. No fim, lamenta “que tenha sido visto como falta disciplina ou serenidade atitude que só assumi no exclusivo propósito de melhor ficar posição de poder continuar defender neste País o interesse nacional”.

No fim, de novo Timor

Vasco Futscher Pereira morreu muito novo, com 62 anos, no Verão de 1984, depois de ter sido ministro um ano. Nas notas biográficas oficiais, é sempre destacado o seu papel nas negociações de adesão de Portugal às Comunidades Económicas Europeias, mas o filho valoriza um gesto diferente do seu curtíssimo mandato como ministro. “Apesar de breve, o meu pai teve um grande papel em relação a Timor-Leste”, diz. Desde a anexação pela Indonésia, em 1975, que a Assembleia Geral da ONU aprovava, todos os anos, uma resolução a condenar a invasão de Timor. Mas todos os anos perdia votos. “Quando o meu pai chegou à ONU [em 1977], verificou que havia cada vez menos países a apoiar Timor e que havia uma tendência clara de derrota: mais tarde ou mais cedo, a resolução seria chumbada e seria difícil manter o tema vivo na agenda internacional.”

Cinco anos depois, já ministro, encontrou a forma de travar esse caminho. “Lembrou-se de que a melhor forma de manter o tema vivo na ONU era mandatar o secretário-geral a encontrar uma solução para Timor-Leste”, conta. “A Indonésia apercebeu-se disso e houve uma grande batalha diplomática para fazer aprovar a resolução.” O ministério montou uma campanha para defender a ideia, enviados especiais voaram para países onde Portugal não tinha representação diplomática e foram feitas inúmeras diligências a alto nível. “Mesmo assim foi difícil. Só passou com quatro votos.”

Bernardo Futscher Pereira: “Esta é a vida de trabalho do meu pai.”

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Diz o filho, Bernardo Futscher Pereira: “Esta é a vida de trabalho do meu pai”. Na fotografia, o embaixador em visita à Caso do Minho no Brasil, em Março de 1975 daniel rocha

 

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