Amar por ti, por mim e por quem (agora) nos apanhar

A Europa foi tudo o que este país sempre acreditou que podia ser, e nestas coisas não há que disfarçar: querer pertencer a qualquer coisa, é querer pertencer a tudo.

Estava Portugal a 100 pontos de vantagem e o Paul Vecchiali ainda não tinha arranjado coragem para comprar um bilhete de comboio para ir encontrar a Catherine Deneuve em Paris. Estava nisto vai para hora e meia, e ainda faltavam mais de 40 minutos até ao fim da votação, quando um amigo, em Paris precisamente, me interrompia o sono durante a projecção do Le Cancre, filme de encerramento que a Cinemateca e o IndieLisboa andaram a dedicar ao mal-amado do cinema francês. Dizia-me ele que bem que podia começar a preparar a festa porque o Salvador ia ganhar. E, no fim, morto o Vecchiali numa pífia cópia do Morte em Veneza, começo a receber mensagens a dar os parabéns e eu sem saber, à porta da Cinemateca, se os ecos do “tetra” do Benfica tinham chegado a todo o lado ou se ainda eram as ave-marias profundas que se tinham ouvido de manhã por todo o país.

Passei o dia ao lado... ou melhor, passei ao lado do “dia inteiro e...”, como deveria dizer hoje a poeta, que foi uma limpeza. Estava o Papa a dar a missa e eu no supermercado, estava o Benfica a chegar ao intervalo e eu no táxi a discutir a fé com um taxista de rádio desligado a fazer mais fintas aos adeptos que o Jonas ao Vitória de Guimarães, estava o Salvador a cantar e eu a ler tweets que criticavam os seus largos ombros, o seu cabelo desalinhado, a ideia de que não cabia ali. E quase perdi o prémio dado ao filme de um amigo no IndieLisboa, porque uma rapariga desmaiou aos meus pés à saída do metro e eu não sabia se a haveria de ajudar ou escrever um post sobre tudo o que se estava a passar.

Quando descia para a sala de cinema, já todos pelo Twitter fora, rendidos, que não tinha nada a ver com o que viera antes e se seguira, o que era isto? Não houve a seguir um macaco e uma cabeça de cavalo e uma trança à la Dothraki, mais um trompete falso gangnam style, numa Europa que já não é de efeitos mas de enfeites, sem marcas nem mensagens políticas, a cantar a diversidade a uma só língua? Que raio estava lá a fazer um rapaz que, aborrecido pelo enésimo ensaio, decidiu improvisar um trompete em plena arena ucraniana?

Certo é que dei por mim a explicar aos meus amigos lá fora, a importância da Eurovisão, porque nestas coisas somos todos especialistas de um momento para o outro.

A dizer que a vitória era mais do que moral porque, como o Carlos Mendes contou ao Mário Lopes no sábado, houve um tempo em que o regime não queria uns gandulos democráticos a entrar pela fronteira dentro, e outro em que foi uma canção da Eurovisão que serviu de senha para a liberdade, e que antes do Salvador já a Maria Guinot chegara tarde a um concurso que tinha deixado de ser sobre canções e passara a ser sobre efeitos, mas agora parecia tudo fazer-lhe justiça.

E ainda de como, se este for de facto um festival queer (apesar da falta de diversidade que se dizia estarem a celebrar), de como a Dulce Pontes fez mais pelo outing de tantos de nós do que alguma vez lhe poderemos reconhecer. E, por fim, de que tudo isso se passou num país que nunca ganhou mas que, ainda assim, parava para ver a Eurovisão (e os Jogos sem Fronteiras) porque houve um tempo em que a Europa era uma coisa muito longe, a Europa foi tudo o que este país sempre acreditou que podia ser, e nestas coisas não há que disfarçar: querer pertencer a qualquer coisa, é querer pertencer a tudo. E agora que a galinha fez o bolo sozinha, queremos comê-lo inteiro. Houve um país, disse-lhe, para quem toda a Europa fica a Leste e, na Eurovisão, era sempre o Leste que ganhava. Parecia que a Europa ficava sempre adiada.

A vitória dos irmãos Sobral é a vitória resiliente de um país-formiga, crente no regresso nublado de um rei perdido, cuja história é escrita por Sísifos e Cassandras. As caixas de comentários das páginas de jornais podem pouco perante tamanha força que torna natural o que é extraordinário. Ou será o contrário? Era isto que explicava, este entusiasmo que nos absorve e devolve uma qualquer centelha de optimismo, que afasta o rating da República da categoria lixo e que contraria a expectativa da facilidade que nos parece invadir. É a vitória de um país que é mais do que uma estância para turistas assustados com os efeitos das primaveras árabes.

Foi difícil, claro que foi, e vai continuar a ser, mas o que havia a perder? Quarenta e nove derrotas aguentariam bem mais uma, a carne já está moída, não dói. Não é a letra dos irmãos Sobral que diz  que “antes de ti, só existi/ Cansado e sem nada para dar” e, ainda assim, aqui estamos?

A música, despojada, a impor-se a uma cacofonia nem sequer babélica, é o melhor exemplo de um estado de espírito que, no fim, nos faz sempre encolher os ombros e explicar que o que parece um feito extraordinário é, afinal, fruto de uma profunda vontade de se ser singular sem nos pormos aos ombros de alguém.

Contrariando o meu próprio entusiasmo, e disfarçando que passara a semana a trautear a música, disse a um amigo, por entre as batidas electrónicas que enchiam a garagem da Culturgest: “não sejas provinciano, é só um festival, sabes quanto custa organizar, metemo-nos cá numa encrenca”. Que devia estar contente, disse-me ele. E estava. Disse a Simone de Oliveira: “parece que fui eu”. Parece. A última vez que dois irmãos abalaram a sociedade portuguesa, acabámos todos a ter que ler nos bancos da escola o capítulo dez de Os Maias, o da ida ao hipódromo, provando a inadequação do ambiente cosmopolita das corridas à vivência social. O sucesso de Salvador é a reconciliação das classes e será lida nos bancos das escolas de música da mesma forma que se acredita que é possível amar, mesmo que tenha que ser pelos dois.

E então eu cantei, baixinho, em francês, para esse amigo que me acordou do sono para celebrar “essa linda língua”: “Meu bem, ouve as minhas preces/ Peço que regresses, que me voltes a querer/ Eu sei que não se ama sozinho/ Talvez devagarinho possas voltar a aprender”. 

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