Gonçalo Salgueiro ou um fado sem sombras

Fadista nascido no Alentejo tem em Sombras e Fado o seu melhor disco até à data. E irá apresentá-lo no CCB.

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Lançou-se nas lides discográficas com um tributo a Amália mas depois foi crescendo num estilo intrinsecamente seu. Foi tendo várias bênçãos dos meios fadistas (Maria da Fé, João Braga, Beatriz da Conceição, Fontes Rocha) e o musicólogo Rui Vieira Nery chegou a saudar-lhe a “voz especialíssima, um dos timbres mais bonitos que têm aparecido no fado nos últimos anos”. Hoje Gonçalo Salgueiro, alentejano nascido em Montemor-o-Novo, soma uma experiência ecléctica sempre servida por uma voz e um estilo de quem diz “detestar imitações”, das casas de fados até ao papel de Cristo no musical Jesus Cristo Superstar, de Filipe La Féria, ou a um projecto onde uniu a sua voz à da soprano internacional de origem romena Elena Mosuc, Operfado.

Mas já se tinham passado vários anos desde o último disco (Gonçalo Salgueiro, 2010, sucessor de No Tempo das Cerejas, 2002, e Segue a Minha Voz, 2006) e ele chegou a pensar num CD duplo, o primeiro com fados e o segundo com temas já gravados com a Romanian National Youth Orchestra. Mas estes últimos ficarão para depois (para um outro trabalho, embora dois já surjam agora) e o quarto disco de Gonçalo, a que chamou Sombras e Fado, inclui sete temas com letras dele, na sua maioria com música de fados tradicionais, e outros que foram buscar criações de vozes como as de Amália, Beatriz da Conceição, Maria da Fé, Fernanda Maria ou António Mourão.

Gonçalo explica assim Sombras e Fado: “Nasce de uma vontade que eu tive, em 2014, de brindar as pessoas que me pediam um novo disco. Então lancei um desafio nas redes sociais para que propusessem temas para eu cantar. E apareceu de tudo, porque as pessoas estão habituadas a ouvir-me em muitos registos diferentes: o fado, os musicais, o Abraço Lusitano [com Alexandra], o Operfado [com Elena Mosuc]. E tive desde pedidos para o Nessun dorma [da ópera Turandot, de Puccini] até ao Malhão malhão! Deu para tudo.” Mas houve muitos que lhe pediram mais letras dele, terreno em que ele se aventurara (com bons resultados) no disco anterior e aqui prossegue.

Mosuc e Saint-Preux

Povo que lavas no rio foi dos mais pedidos, mas ele resistiu a inclui-lo no disco. “É icónico e é impossível de separar da interpretação da criadora [Amália]. Por isso, quis ser fiel a mim próprio e fazer uma coisa à minha maneira. Foi quando me lembrei de ir para a minha terra no Alentejo, em Montemor-o-Novo, com o Grupo Coral Fora d’Horas, para uma capela que está ao cimo do castelo do século XIII, sem ensaios sem nada. Estava frio, dois graus negativos, havia aquecedores por todo o lado e estivemos até às duas da manhã para gravar aquilo, só vozes, sem qualquer outro instrumento.” Só depois se deu conta de que fizera uma coisa que “mais ninguém tinha feito”: “Há muitos fadistas que incluíram cante alentejano nos seus trabalhos, mas eu fiz o oposto: peguei num grupo de cante alentejano e pu-lo a cantar um fado tradicional.” Quem quiser ouvir o resultado, tem de experimentar a faixa 17, escondida no final do disco (não há qualquer referência à sua existência, quer na capa quer na ficha do CD)

De resto, em Sombras e Fado há temas reconhecíveis como Naufrágio, Noite cerrada, Boca encarnada (Joaquina), Amor de mel amor de fel, Quem mora naquela rua ou Trigueirinha, a par de originais escritos por Gonçalo ou até uma versão portuguesa (Tu) do Concerto pour une voix, de Saint-Preux: “Andava com esse tema na cabeça e com a ideia de escrever uma letra para ele.” Começou a escrevê-la num avião e terminou-a na Roménia, antes do final da digressão Operfado. Gravou tudo, fez novo arranjo, pediu à soprano Elena Mosuc “um apontamento vocal”, o que ela fez (curiosa ocorrência, uma prima donna do Scala a “fazer um apontamento” no disco de um fadista português), mas quando foi à SPA tratar das autorizações, soube que o autor do tema proibira, a nível mundial, a sua regravação. Porém, apesar de ter sido pedida autorização e esta ser de novo negada, arranjaram maneira de fazer chegar ao autor a gravação. Saint-Preux ouviu-a, falou depois telefonicamente com Gonçalo Salgueiro e, no final, decidiu abrir uma excepção: a versão portuguesa teve luz verde.

Mentira e arte não jogam

Outro tema com história, esta mais triste, é Volta, de Diogo Piçarra (antigo vencedor do Ídolos). Fala de uma perda física. “Eu já tinha sofrido algumas perdas, algumas físicas e outras não só físicas e aquilo mexeu comigo. Não era um fado, mas resolvi fazer-lhe um outro arranjo, pedi autorização ao Diogo para gravar e, infelizmente veio a tornar-se profético. Porque durante o processo eu acabei por perder a minha mãe.” Por isso, Gonçalo dedicou o tema à sua memória. “Foi uma triste coincidência.”

Em termos vocais, musicais e emocionais, este é o disco em que ele mais se expõe e mais alto aposta, com resultados compensadores. Sombras e Fado é, num fado sem sombras, o melhor disco de Gonçalo Salgueiro até à data. “O tema que está patente nas minhas criações é quase sempre o mesmo. Acho que uma pessoa deve falar sempre a sua verdade. A mentira e a arte não podem andar juntas. Isso corre sempre bastante mal, mais cedo ou mais tarde.” A voz dele diz o resto. Sombras e Fado será apresentado ao vivo em Lisboa, no Grande Auditório do CCB, em 17 de Novembro.

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