A comunicação do risco em Portugal: o caso do sarampo (1)

Nesta fase de comunicação de crise vimos reativarem-se muitos dos mecanismos que não permitem uma atuação adequada a nível de política pública, e podem afetar o direito à informação e a tomada racional de decisões.

Não existe verdadeiramente em Portugal uma comunicação do risco, sobretudo na área da saúde, estando adstrita à comunicação de crise. No máximo, estaremos perante uma comunicação de risco da fase 1 do modelo de William Leiss, onde os profissionais elaboram mensagens a transmitir a determinados públicos-alvo numa lógica unidirecional. A comunicação de risco da fase 3 implica necessariamente uma dinâmica bidirecional, onde os decisores também se envolvem num processo de aprendizagem social, fomentando e consolidando níveis elevados de confiança mútua com o público. 

Como bem constatou o sociólogo alemão Niklas Luhmann, o hiato a nível comunicacional entre os que participam nas decisões e os que, sendo excluídos do processo de decisão, sofrem as consequências das decisões tomadas tem vindo a aumentar. Este hiato comunicacional crescente pode conduzir a um menor nível de confiança nas relações entre os membros de uma dada sociedade. Embora Luhmann não conteste a separação clara e assimétrica entre peritos e leigos, na definição dos riscos e das intervenções propostas há que atender sempre, numa lógica de cidadania inclusiva e até de eficácia das políticas públicas, às identidades emergentes e às possibilidades alternativas sempre existentes em qualquer mundo social.

Abordando especificamente a área da saúde, comecemos com uma citação do parágrafo final do Apontamento Inicial do Plano de Vacinação Nacional 2017, publicado em dezembro de 2016, assinado pelo diretor-geral da Saúde, Francisco George, e pela subdiretora-geral da Saúde, Graça Freitas: “O Programa já mudou o perfil das doenças infeciosas em Portugal. Um assinalável sucesso. Reduziu a mortalidade infantil. Erradicou a varíola. Eliminou a paralisia infantil, a rubéola, o sarampo. Outras doenças seguir-se-ão a caminho do passado”.

Contrariamente ao anjo da história de Walter Benjamin, o anjo da história da Direção-Geral da Saúde é otimista, está virado para o futuro, confia no progresso, os ventos que lhe sopram nas asas são de conquista e remete para o passado o reino das doenças. Só que, no caso do sarampo, o passado passou a futuro próximo, e, como amplamente noticiado pela comunicação social, Portugal registou 27 casos até 5 de maio de 2017.

O otimismo dos responsáveis da Direção-Geral da Saúde desvalorizava um relatório do Comité Regional para a Europa da Organização Mundial de Saúde (OMS) que reportava 5133 casos de sarampo na Europa em 2016, com 16 mortes, afetando 33 dos 53 países desta região. Num mundo de forte mobilidade das pessoas, como poderia Portugal não ser afetado por este surto de sarampo?

Ao ler a afirmação dos responsáveis da Direção-Geral da Saúde sobre o sarampo como doença do passado, o que pensariam os cidadãos e cidadãs portugueses, e que medidas de prevenção adotariam em consequência da informação recolhida?

Não tendo sido delineada, perante os factos comunicados pela OMS em 2016, qualquer estratégia de comunicação de risco preventiva pela Direção-Geral da Saúde, apelando de forma clara e com os argumentos científicos adequados à vacinação, com a declaração dos primeiros casos de sarampo em Portugal em março de 2017, entrou-se numa fase de comunicação de crise.

Nesta fase de comunicação de crise vimos reativarem-se muitos dos mecanismos que não permitem uma atuação adequada a nível de política pública, e podem afetar o direito à informação e a tomada racional de decisões. O ónus foi imediatamente colocado nas famílias que não vacinaram os filhos e filhas. Sem qualquer recurso a estudos sociológicos que permitissem caraterizar as pessoas e famílias que não estavam vacinadas, de estabelecer com rigor o seu perfil sociodemográfico, começaram logo os colunistas da imprensa portuguesa a etiquetar e a classificar as mesmas de forma pejorativa, utilizando termos como “hippies” (?), “ignorantes”, “energúmenos”.

E num sistema nacional de saúde regido pela confidencialidade como se soube que a jovem que faleceu não estava vacinada e, mais grave, que uma outra irmã tinha sido também internada? O que acrescenta e que imagem passa o diretor-geral da Saúde prestar declarações à porta do Hospital Dona Estefânia aquando da divulgação desta última informação?

Entre os vários apelos à vacinação, a sugestão implícita ou explícita de proibição de inscrição nas escolas sem se ter o boletim de vacinas em dia, à recomendação de quarentena forçada em caso de contacto com pessoa infetada, como compreender que os diretores das escolas tivessem que solicitar publicamente informações e medidas a tomar, tendo sido disponibilizado pela DGS um simples endereço eletrónico e enviada tardiamente uma nota informativa?

Neste processo comunicacional marcado pela incerteza, pelo medo, pela condenação na praça pública, pela ostracização e pela falta de informação, que serve assistirmos televisivamente a uma reunião na sede da Direção-Geral da Saúde? Mais ainda, que contributo dá para o debate o Comissário Europeu da Saúde quando afirma, sem dados, que as pessoas não adeptas da vacinação, “os antivacinas estão a pôr toda a gente em risco”? (jornal PÚBLICO online de 24 de abril de 2017).

[Concluirei a análise da comunicação do risco na área da saúde na próxima crónica do PÚBLICO]

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

A opinião aqui veiculada é da responsabilidade do investigador, não constituindo qualquer posição oficial do Centro de Estudos Sociais

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