Rão Kyao dá alma ao bambu e traz gnomos e duendes à música portuguesa

Em Aventuras da Alma, Rão Kyao faz-nos embarcar numa fantasia sonora inspirada pelas fadas de Antero. Disco chega às lojas esta sexta-feira.

Fotogaleria
Rão Kyao no bosque, palco de gnomos e duendes imaginários LUÍSA REBORDÃO
Fotogaleria
Capa do disco, feita pelo pintor e músico iraniano Fedross Imani. Na base, pode reconhecer-se o perfil litoral de Portugal FEDROSS IMANI
Fotogaleria
Rão Kyao a tocar uma das suas flautas de bambu DR

O primeiro cenário, imaginado, é o de um bosque. Há uma sugestão rítmica de chula, bem portuguesa, mas que depois se dilui num universo sonoro onírico e universal. É o novo disco de Rão Kyao, Aventuras da Alma, cujo início ele explica assim: “A melodia que aparece ali é a dos gnomos e dos duendes, que de repente resolvem entrar numa festa bem portuguesa, com mandador e tudo. E é o encontro desses dois espíritos que dá origem à caixa de pandora aberta e à visão de todos esses sons.” É, diz ele, “uma coisa fantasiosa, uma combinação entre uma rítmica forte (quando ela lá está) e coisas melódicas.”

Com uma vasta discografia onde as ligações às músicas étnicas são antigas (Índia e Macau, sobretudo), Rão Kyao atribui a concretização deste disco a um episódio: “Um dia, estava com a minha mulher, e começámos a ler um poema do Antero de Quental chamado As Fadas. Eu sou fã incondicional do Antero, mas não conhecia este poema [começa assim: “As fadas… eu creio nelas!/ Umas são moças e belas,/ Outras, velhas de pasmar…/ Umas vivem nos rochedos,/ Outras, pelos arvoredos,/ Outras, à beira do mar…”]. Ali estávamos a falar em fadas, em fantasia, em aventuras da alma (eu já tinha o nome), e isso levou-me ao resto, ao Lele [espírito feminino da natureza, segundo a tradição romena], à Dáfnea [“uma ninfa do Loureiro para a imaginação antiga grega”].”

Ragas e lendas

O tecido melódico utilizado é o das ragas indianas (“parti dessa base, que tem sido uma maneira minha de compor desde há bastante tempo”), mas as influências temáticas e sonoras são muitas, envolvendo lendas e crenças gregas, hindus, romenas, africanas, orientais, indígenas. O disco, com doze temas, é todo instrumental, exceptuando Sete Sóis, dedicado ao festival Sete Sóis Sete Luas, com vocalização da cantora Rita Maria. De resto, a acompanhar Rão Kyao (flautas de bambu e voz) estão Toni Lago Pinto (violas clássica e braguesa), Renato Silva Júnior (teclados e acordeão), André Sousa Machado (bateria) e Ruca Rebordão (percussões). “É o meu grupo, assumi não fazer uma coisa de convidados. A única excepção é a Rita Maria porque sou fã, ela é uma cantora fora dos parâmetros normais. Melódica, afinada, improvisadora, é uma cantora extraordinária.”

Na capa, feita de propósito para o disco pelo pintor iraniano Fedross Imani, vê-se uma jangada feita de canas de bambu, num mar dourado pelo sol e nas pedras que estão na base do quadro pode reconhecer-se o perfil litoral de Portugal. “É um músico também, e um grande pintor”, diz Rão Kyao. E a capa dá corpo gráfico aos temas, que se interligam. “Penso sempre num conceito de álbum, porque faz sentido para a história que estou a contar. Mas a tendência actual é outra vez a do single, a da música avulsa. E é pena.”

O conceito do disco assenta numa ideia. “O português, aquele amante da sua música e das suas raízes, vê-se de repente, por meio deste encontro místico-fantasioso, envolvido numa viagem que não tem uma lógica real de viagem; é como se, devido a um êxtase espiritual, lhe fossem aparecendo as coisas.” E isso aplica-se aos temas, à envolvência sonora de cada um. “Quando penso na Dáfnea, só podia dedicar-lhe o tema que leva o nome dela. Já o Emére, que [na tradição do povo Iorubá] é uma criança que consegue passar deste mundo para o outro, o que havia de ter? É uma canção de embalar.”

Pureza de elementos

O disco fecha com dois temas que têm uma sequência lógica. O primeiro é Celebração das almas do bambu: “O bambu, quando é cortado, ganha alma. Geralmente pensa-se nele intacto, é bonito de ver, até serve para a construção, mas quando a gente o corta e começa a tocar, ele ganhou uma alma. Então, esse coro de almas de bambu faz uma celebração. Mas só depois da visita dos gnomos é que a gente entende isso.”

Espírito de Aljezur consuma o regresso à terra, após a festa das almas. “Sou um apaixonado por esse tema desde que o ouvi nas recolhas do Giacometti, um homem que veio da Córsega para nos dizer que a nossa música, a portuguesa, é a mais verdadeiramente mediterrânica! Porque manteve uma certa pureza de elementos que ele associa à música mediterrânica. E esta melodia, que ele captou [tradicional do Algarve] tem fado, tem o nosso lamento, a nossa saudade. E eu achei que resumia isso tudo, a música portuguesa na sua universalidade, porque este espírito é compreensível por qualquer pessoa do mundo.”

Sugerir correcção
Comentar