Médicos não querem que enfermeiros façam diagnósticos

Ordem dos Médicos não concorda com proposta do Governo que abre a porta a diagnósticos feitos por enfermeiros. "A Medicina ‘alimenta e gere’ todas as outras profissões”, justifica.

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Enfermeiros dizem que visão dos médicos nesta matéria é “retrógrada” NUNO FERREIRA SANTOS

Está declarada a guerra entre um grupo de enfermeiros e a Ordem dos Médicos. A causa é o projecto de diploma do Governo que define o que cada profissão no sector da saúde pode fazer. O Conselho Nacional da Ordem dos Médicos (OM) não quer que os enfermeiros possam fazer “avaliação diagnóstica” e pretende que fique claro na proposta de lei que serão sempre os clínicos a coordenar as equipas de saúde.

É uma “visão retrógrada” e de um “corporativismo inaceitável”, reage um grupo de enfermeiros liderado pela ex-bastonária Maria Augusta Sousa, numa posição ontem enviada para a Comissão Parlamentar da Saúde, onde a matéria está a ser analisada desde 2016. “Considerar que os enfermeiros não podem realizar diagnósticos de enfermagem é no mínimo acintoso e desrespeitador do trabalho que milhares de enfermeiros diariamente desenvolvem”, criticam num texto cujo primeiro signatário (a título individual) é o presidente da Associação Portuguesa de Enfermeiros, João Fernandes.

A proposta de lei nº 34/XIII apresentada pelo Governo em 2016 visa enquadrar legalmente os actos em saúde, definindo as funções e competências das profissões do sector que são auto-reguladas (médicos, enfermeiros, biólogos, médicos dentistas, farmacêuticos, nutricionistas e psicólogos). Portugal prepara-se, assim, para ter um diploma que descreve o que cada profissão no sector da saúde pode fazer, depois de várias tentativas de definição do acto médico terem soçobrado, ao longo das últimas duas décadas.

Bastonária desvaloriza posição dos médicos

Descontente com a proposta, o Conselho Nacional da OM considerou, num parecer remetido para o Parlamento, que o legislador “desprezou” a “centralidade da Medicina relativamente a todas as outras profissões, quando esta constitui o núcleo central da saúde onde gravitam todas as áreas”. “A Medicina ‘alimenta e gere’ todas as outras profissões”, justifica.

Para o órgão máximo da OM, a definição do acto de enfermagem que consta do projecto de diploma não respeita a legislação do país nem as definições internacionais. A OM põe em causa a utilização da expressão “avaliação diagnóstica” transversalmente a várias profissões “de um modo pouco claro”, e defende que, se a avaliação pode ser realizada por qualquer uma, o diagnóstico só pode ser efectuado pelo médico. Sugere assim a alteração do artigo que define o acto de enfermeiro, retirando da proposta a palavra diagnóstico e mantendo apenas a “avaliação”.

Lamentando que a posição da OM inclua afirmações “geradoras de um clima de conflitualidade”, o grupo de enfermeiros contestatário considera que reproduz uma “visão profundamente errada e redutora”.  “O diagnóstico em enfermagem é uma matéria regulada nacional e internacionalmente”, frisa, recordando que isso está expresso na Classificação Internacional para a Prática da Enfermagem da Organização Mundial de Saúde.

A bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, desvaloriza esta tomada de posição dos colegas, por considerar que a proposta do Governo não está em causa neste momento. “Todas as ordens foram ouvidas na Comissão de Saúde e três grupos parlamentares apresentaram propostas de alteração pontuais à proposta inicial",  sem que nenhuma delas tivesse alterado o texto "no que se refere aos enfermeiros ou aos actos médicos", frisa.

Quanto à posição da OM, considera também que a sua pretensão “não tem sentido”, mas garante que a Ordem que lidera já se manifestou sobre isto “sem grandes alaridos”. "Tenho pena que a anterior bastonária esteja preocupada com uma questão que já foi acautelada e não esteja preocupada com a falta de enfermeiros", critica Ana Rita Cavaco.

Médicos devem coordenar

O que também desagradou aos representantes da OM no projecto de diploma governamental foi o facto de, depois de uma exposição de motivos centrada no trabalho em equipa, o articulado não fazer referência à “questão central”, que é a da “liderança e coordenação das equipas”.

Propõem, por isso, uma nova formulação para o artigo que define o acto médico e a inclusão de dois novos artigos. Um em que se clarifica a participação de outros profissionais de saúde no acto médico, abrindo a porta à prática de acções técnicas integradas neste conceito, mas sempre “sob orientação ou mediante prescrição médica”, e outro sobre a coordenação das equipas multidisciplinares, em que fica expressamente definido que são lideradas por médicos.

As equipas multiprofissionais “são e devem continuar a ser coordenadas por quem, em razão da matéria, se encontrar em melhor posição técnica e científica para garantir os melhores resultados, seja médico, enfermeiro, psicólogo, farmacêutico, administrador, etc”, ripostam o grupo de enfermeiros. “O foco será o da competência e não o da profissão”, remata.

Lembra ainda que este processo legislativo apresenta “características recorrentes” em relação a outros iniciados no passado sobre o acto médico. O primeiro ocorreu em 1997 e terminou dois anos depois com o veto do Presidente da República. Em 2000, foi apresentada um novo projecto de diploma sobre o acto médico que não chegou a ser agendado para discussão e, em 2005, uma nova tentativa iniciada pela OM/Norte ficou pelo igualmente pelo caminho.

Até que, no ano passado, o Ministério da Saúde apresentou esta proposta de lei sobre “actos em saúde”. A iniciativa era reclamada há muitos anos, mas trata-se de uma matéria complexa e polémica. A proposta está na Comissão Parlamentar da Saúde onde, até à data, chegaram mais de quatro dezenas de contributos e pareceres de várias ordens, de associações de profissionais de saúde e de sindicatos e foram ouvidos os representantes das várias ordens, incluindo a dos enfermeiros.

Em Setembro passado, a Federação Nacional dos Médicos já tinha enviado uma carta ao ministério em que punha em causa a possibilidade de outros profissionais fazerem diagnósticos e prescreverem. Nessa altura a OM era liderada pelo anterior bastonário José Manuel Silva, que discordou desta posição e considerou que o texto era equilibrado. O que este grupo de enfermeiros teme agora é que a proposta seja alterada, o que  “é muito perigoso”, enfatiza Maria Augusta Sousa.

Sem querer comentar a posição dos enfermeiros, o actual bastonário da OM, Miguel Guimarães, que herdou o dossier, sublinha que não se pretende ter uma definição de acto médico “a qualquer custo”. A proposta,”se levada até às últimas consequências, significaria que cada um de nós pode fazer tudo”, critica. E, frisa, “penaliza” os médicos, que são sempre, em última instância, os responsáveis pelos actos em saúde.

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