Trump meteu-se com o FBI e o seu instinto fatal virou-se contra ele

Director interino surge numa audição no Senado e contradiz o Presidente Donald Trump: não só James Comey era admirado pela maioria dos agentes, como a investigação sobre a Rússia é "muito significativa" e não vai ser travada.

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Donald Trump está a ter problemas para explicar a demissão do director do FBI Molly Riley/EPA

A história pode fazer lembrar um episódio da série Ficheiros Secretos, mas tudo indica que Donald Trump não esperava uma reacção muito negativa do Partido Democrata quando demitiu o director do FBI, James Comey. Para surpresa do Presidente dos Estados Unidos, o afastamento do responsável pela investigação sobre as suspeitas de conluio entre a Rússia e pessoas que o ajudaram a chegar à Casa Branca deixou os corredores de Washington em estado de guerra, como num episódio da série Guerra dos Tronos – o Partido Democrata aproveitou para voltar a atirar-se à jugular de Trump e a despejar as palavras "Nixon" e "Watergate" em cima do primeiro jornalista que lhe aparece à frente, e o Partido Republicano coça a cabeça de preocupação por não saber se as promessas de campanha vão atrasar-se ainda mais por causa do que aconteceu esta semana.

De acordo com dezenas de pessoas ouvidas pelos jornais The New York Times e Washington Post – todas a coberto de anonimato para evitarem o mesmo destino do director do FBI –, o Presidente norte-americano tomou a decisão de despedir James Comey no passado fim-de-semana. Dias antes, o director do FBI tinha dito que não se arrependia de nada do que fez durante a campanha eleitoral do ano passado, apesar de ter conseguido a proeza de unir o Partido Republicano e o Partido Democrata numa manifestação de falta de confiança.

E foi por causa dessa posição do Partido Democrata que Donald Trump pensou que tinha encontrado a justificação ideal para se ver livre do director do FBI sem levantar muitas ondas – farto de ter um acesso de fúria sempre que James Comey aparecia na televisão a enfrentá-lo ou a desmenti-lo, o Presidente norte-americano terá pedido ao seu procurador-geral, Jeff Sessions, para fundamentar o despedimento do director do FBI.

Sessions afastou-se da investigação sobre as suspeitas de interferência russa porque não contou toda a verdade durante as audições no Senado para a sua nomeação – afirmou que não tinha falado com nenhum responsável russo sobre as eleições durante a campanha eleitoral nos EUA, mas mais tarde foi revelado que conversou pelo menos duas vezes nesse período com o embaixador russo em Washington, Sergei Kisliak – uma delas em Cleveland, durante a convenção que consagrou Trump como candidato do Partido Republicano. Ainda assim, o procurador-geral pediu ao seu adjunto, Rod Rosenstein, que investigasse a forma como o director do FBI lidou com o processo dos e-mails de Hillary Clinton (que foi o motivo das queixas do Partido Democrata contra ele) e recomendou a sua demissão.

Da forma como a história é contada nos jornais norte-americanos, a intenção encontrou finalmente um argumento: Trump queria despedir Comey, mas não podia deixar em aberto a ideia de que o objectivo era atrasar ou comprometer a investigação do FBI sobre elementos da sua própria equipa de campanha; o que o Presidente norte-americano não terá antecipado é que bastava o despedimento de Comey, fosse qual fosse a justificação, para deixar o Congresso em pé de guerra.

Ainda hoje, três dias depois do anúncio do despedimento de James Comey, ninguém sabe qual é o verdadeiro objectivo de Donald Trump – se o tempo vai mostrar que as investigações sobre a Rússia estão tão perto de o queimar que era preciso fazer alguma coisa, ou se o director do FBI foi apenas mais uma vítima da forma como Trump conduz os seus negócios, seja no imobiliário, seja na Sala Oval. Afinal, não foi por ter dado provas de dominar a fina arte do cálculo político que milhões de norte-americanos votaram nele – ele é o homem que age por impulso sem pensar nas consequências, e James Comey podia não ter as qualidades que Trump procura num yes man.

Tiro no pé ou na cabeça?

Seja qual for o verdadeiro motivo da inédita decisão na história dos Estados Unidos de um Presidente despedir um director do FBI durante uma investigação criminal sobre um assunto que lhe diz respeito, a jogada de  Trump já pode ser considerada um tiro no pé – só o tempo dirá se a ferida vai sarar ou se foi um daqueles tiros no pé que acabam por acertar em cheio na cabeça.

Se a ideia é atrapalhar a investigação sobre as acusações de ingerência russa, esse tiro vai provavelmente sair pela culatra – como aconteceu com Richard Nixon na década de 1970 e com Bill Clinton na década de 1990, os agentes do FBI e dos serviços secretos têm a tendência para se unirem quando o seu trabalho é posto em causa por um Presidente.

E foi isso mesmo que o director interino do FBI, Andrew McCabe, disse esta quinta-feira no Senado, durante uma audiência que já estava marcada e em que deveria ter participado James Comey: apesar de garantir que não houve nenhuma tentativa para travar a investigação, McCabe fez várias declarações que devem ter irritado Donald Trump. Confrontado com a afirmação da Casa Branca de que Comey não estava a fazer um bom trabalho, o director interino do FBI disse que trabalhar com ele foi "o maior privilégio e a maior honra" da sua vida profissional, e desmentiu o Presidente, que acusara Comey de ter perdido a confiança da maioria dos agentes que liderava: "A grande maioria dos funcionários do FBI mantinha uma ligação profunda e positiva com o director Comey."

Mas a declaração mais forte surgiu quando McCabe foi confrontado com a narrativa de Trump de que a investigação à suspeita de ingerência da Rússia é uma perda de tempo e de dinheiro dos contribuintes – para o homem que está a substituir o responsável despedido por Trump, essa investigação é "muito significativa" e não vai ser travada por ninguém.

Contra-ataque do FBI

À cabeça de muita gente veio outra vez a imagem daquele que é, até agora, o maior escândalo a envolver um Presidente dos Estados Unidos: Watergate. Em 1973, Nixon instruiu o procurador-geral e o seu adjunto para despedirem o homem que liderava a investigação ao caso, quando foi intimado a entregar as gravações que fez na Casa Branca. Os dois responsáveis recusaram-se a fazer esse papel e apresentaram a demissão na noite em que Nixon conseguiu que o terceiro na linha do Departamento de Justiça despedisse o procurador especial, num episódio que ficou conhecido como Massacre de Sábado à Noite – o Presidente quis controlar a investigação, mas acabou por perder esse braço-de-ferro a longo prazo.

Esta semana, poucas horas depois do despedimento do director do FBI, até a comissão do Senado que também está a investigar as suspeitas de interferência da Rússia parece ter começado a trabalhar mais depressa – liderada pelo senador do Partido Republicano Richard Burr, a comissão cumpriu a ameaça que tinha feito no fim do mês passado e intimou o ex-conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump, o general Michael Flynn, a entregar documentos relevantes para a investigação. A comissão tinha pedido esses documentos no dia 28 de Abril mas Flynn não quis colaborar, e a intimação chegou um dia depois de o Presidente ter despedido o director do FBI.

Mesmo que Trump não tenha nada a esconder, a demissão do director do FBI foi uma jogada tão arriscada que passou a dominar a atenção em Washington, numa altura em que o Partido Republicano e a Casa Branca precisavam de se concentrar na aprovação de algumas das suas promessas mais importantes, depois de uma fase conturbada em que nem com a maioria na Câmara dos Representantes conseguiram derrubar facilmente o Obamacare – e ainda falta convencer o Senado a fazer o mesmo, algo que já era difícil e que agora poderá ser ainda mais complicado. E pela frente ainda há uma reforma fiscal por fazer, que Trump prometeu ser não só grande como a maior de sempre no país.

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