O avanço do populismo e o projecto europeu

Não deixa de ser surpreendente este mal-estar revelado pelos votantes numa época em que, apesar de tudo, as economias continuam prósperas.

Ao mesmo tempo em que no panorama político mundial se verificam inesperadas mutações (veja-se a imprevista vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de 2016), vem-se verificando um ataque aos partidos políticos que compõem o que usualmente se chama “o sistema”: aqui, sobressai a ascensão de forças populistas, marcadas pelo nacionalismo, pelo proteccionismo e pela xenofobia — avessas às fórmulas de integração internacional, de que a União Europeia é o principal expoente.

Essas forças manifestaram-se sobretudo no triunfo do “Brexit” no Reino Unido (o que não envolveu, é certo, o desmantelar dos partidos tradicionais, mas muito ficou a dever ao impulso conferido pelo UKIP, partido exterior ao sistema e de muito pequenas dimensões mas que, mesmo assim, foi o suficiente para influir decisivamente no espírito dos eleitores) e na asfixia, em França, dos partidos conservador e socialista, dando lugar, pela primeira vez, a uma luta confinada a dois candidatos exteriores ao “sistema”. E se, nesse país, ainda a vitória recaiu sobre um político favorável ao internacionalismo (ou ao cosmopolitismo) e à integração na Europa — Macron —, a posição alcançada pela candidata da Frente Nacional — Le Pen — não tranquiliza quanto à possibilidade de desenvolvimentos futuros da corrente populista.

Não pode ignorar-se que se formaram nos eleitorados, mesmo em países de sólida estrutura democrática e economicamente desenvolvidos, como os Estados Unidos, a França e o Reino Unido, ondas de descontentamento quanto a linhas de orientação política e de oposição aos aparelhos partidários que até há pouco eram desconhecidas.

Noutros países, como na Holanda, as forças anti-sistema também se têm demonstrado, por ora com sorte diferente e não se posicionando ainda para tomar o poder. A mudança do espírito de largas camadas de eleitores tem assumido formas diversas. Trump venceu graças às peculiaridades da estrutura eleitoral norte-americana, porque se esta se conformasse com os padrões nacionais correntes teria perdido; Le Pen foi derrotada porque, num sistema em duas fases, se lhe opuseram as forças conjuntas das várias correntes do eleitorado; o “Brexit” triunfou porque foi menos convincente ou mais frouxa a argumentação dos defensores da permanência, e se explorou até ao limite a tradicional desconfiança dos britânicos em relação ao continente, jogando-se, de resto, com os receios de uma imigração maciça.

Não deixa de ser surpreendente este mal-estar revelado pelos votantes numa época em que, apesar de tudo, as economias continuam prósperas e os níveis de vida permanecem elevados. Há, é certo, largas franjas dos eleitorados a quem a globalização (e a integração) não aproveitou, apontando-se designadamente a insatisfação dos meios rurais, menos receptivos do que os urbanos aos proclamados benefícios da globalização.

Mas isso não basta para explicar o fenómeno do desvio maciço dos votantes para visões saudosistas — como a do regresso às fronteiras fechadas do passado anterior à integração — ou irrealistas e inexperimentadas, como as propostas de Trump e de Marine Le Pen. O fenómeno mergulha mais fundo as suas raízes, parecendo assentar numa espécie de descontentamento geral perante a ineficácia de resultado das políticas tradicionais.

Pode dizer-se que, nos actuais sistemas políticos, a habitual antítese direita-esquerda tende a ser ultrapassada, processando-se antes o choque entre a perspectiva cosmopolita e de abertura aos fluxos internacionais, que parecia solidamente radicada, e uma contestação xenófoba baseada no nostálgico reviver de valores nacionais que a globalização terá sacrificado. Isto esteve presente na eleição de Donald Trump (afirmação de voltar à América “Great” do passado), tal como no “Brexit” (o Reino Unido recuperando a soberania cedida) ou na ascensão de Le Pen (regresso à França consolidada no interior das suas fronteiras).

De resto, o movimento de contestação do sistema político existente e das instituições que comporta não é uniforme, pois nem em todos os casos ele se traduz na progressão de forças não tradicionais. Se estas estão presentes nos casos dos Estados Unidos, da França, da Holanda, da Áustria, da Grécia e, em certa medida, da Espanha, não é ainda sensível a sua influência noutros países, como a Alemanha, Portugal e o próprio Reino Unido (onde o “Brexit” parece, ao invés, levar ao reforço do partido no poder).

Em todos estes processos, o velho ideal europeu vai perdendo o pouco fulgor que lhe resta. Há uma surda vaga de insatisfação e, talvez pior ainda, de desinteresse pelo processo de integração, o qual se vai manifestando por ocasião das pugnas eleitorais nos diferentes países e, em particular, quando das eleições europeias.

O problema é tanto mais sério quando é certo que no interior do próprio sistema da integração europeia irrompem afirmações do que vai sendo chamado o nacionalismo “iliberal”: é o caso da Polónia e da Hungria, países em que se vão processando crescentes desvios em relação aos valores da democracia e da liberdade de expressão subjacentes ao processo europeu.

Irrompendo o populismo com diferentes intensidades consoante os países, plasmando-se umas vezes na ascensão de novos partidos, infiltrando-se em outros, sub-repticiamente, na acção e no comportamento das forças clássicas no poder, torna-se bem mais difícil enfrentar o fenómeno do que sucederia se a rebelião dos eleitores se manifestasse homogeneamente em todos os planos nacionais. E também se se detectasse uma causa clara para a sua eclosão. Ora, a verdade é que, excluindo porventura a crise de 2008, cujo começo foi assinalado pelo aluimento do Lehman Brothers, não se verificaram fenómenos que, em si, pudessem explicar tão ampla reversão dos eleitorados. Talvez para a explosão do populismo contribua a aversão aos movimentos de refugiados (ligada ao temor suscitado pelo terrorismo), e aqui se encontre, possivelmente, a causa principal do crescimento das posições xenófobas — a par do descontentamento dos sectores que se sentem prejudicados pela globalização.

Perante a invulgar situação, impõe-se, sem dúvida, a reformulação do sistema da integração europeia. Deixaram de ser suficientes pequenas modificações, como a que consistiria em se procurar contrariar a excessiva intromissão na vida corrente dos cidadãos, que tem sido apontada como uma das causas de irritação em relação às autoridades de Bruxelas. Torna-se indispensável ir-se mais fundo, questionando o próprio modelo institucional da União Europeia, reformulando os seus objectivos e repensando a questão central da intensidade da integração.

O projecto europeu, que parecia vocacionado para ascender sempre a novos patamares e destinado a acolher cada vez maior número de membros, sofreu, sem dúvida, um enorme revés com o “Brexit”, o qual traduz, pela primeira vez, uma desistência (e, no caso, de enorme peso) e o correspondente encolhimento do elenco dos participantes. E, caso a Frente Nacional tivesse triunfado nas eleições presidenciais de França, aquele projecto não ficaria longe de se afundar.

A subida dos nacionalismos em moldes populistas e a viragem autoritária em certos países membros, conjugando-se com a saída britânica, não abrem as melhores perspectivas de futuro. Neste contexto, a reformulação do sistema de integração europeia deparará, sem dúvida, com muito grandes dificuldades.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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