Não quero messias. Bastam-me políticos decentes

É, aliás, impossível saber neste momento se Macron estará à altura dos enormes desafios que tem pela frente. Mas isto sabemos: Marine Le Pen não estaria.

Existe uma óptima frase de Almada Negreiros que deveria ser recordada mais vezes: “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.” Tenho-me lembrado muito dela a propósito de Emmanuel Macron e do cepticismo que rodeia a sua escolha como presidente de França, mesmo por parte daqueles que são oriundos da sua área política. Uns dizem que as legislativas que se seguem podem produzir um Parlamento de tal forma fragmentado que Macron será incapaz de governar. Outros garantem que só foi eleito devido a uma coligação negativa, e que ninguém realmente se entusiasma com ele ou com o seu programa. No Observador, José Manuel Fernandes escreveu um texto após o debate como Marine Le Pen intitulado: “Lamento, não creio que o messias se chame Macron”.

Certo. Mas quem é que está à procura de um messias? Esta ideia de que as tarefas espinhosas em política só podem ser resolvidas por grandes homens parece-me muito pouco produtiva, pela simples razão de que são as grandes ocasiões que fazem os grandes homens e não os grandes homens que fazem as grandes ocasiões. Não haveria Churchill sem a Segunda Guerra Mundial, Lincoln sem a escravatura, Mandela sem o apartheid ou Soares sem o Estado Novo e o 25 de Abril. Como dizia o francês Deleuze, já que estamos em dia de citações, o que importa é cada um estar à altura daquilo que lhe acontece, e se nada de especial acontece a altura será sempre limitada. É perfeitamente possível que um potencial grande homem tenha levado uma pacata vida como pasteleiro ou vendedor de telemóveis, sem nunca ter conseguido exibir o incrível heroísmo que tinha dentro de si, pela simples razão de que no seu tempo e no seu mundo nunca aconteceu nada que permitisse demonstrar a fibra de que era feito. Querem muitos heróis e grandes pulhas? Arranjem uma guerra ou uma ditadura, porque são as épocas de urgência, de vida ou morte, que mostram a massa de que cada um de nós é feito.

Sim, as frases que hão-de salvar a humanidade estão há muito escritas, o mundo já cá estava e irá continuar, e de nada vale aguardar pelo ungido que faça jorrar leite e mel. Aquilo que qualquer um deve fazer, até por termos o privilégio de viver em democracia, é manter a lucidez que permite separar, como escrevi no sábado, os políticos decentes dos indecentes, e votar de acordo com isso. Essa é a nossa limitada forma de salvar a humanidade, e foi o que aconteceu no domingo em França. O programa higiénico venceu, e isso chega para nos regozijarmos, sem que para tal seja necessário acender uma vela pela vinda de um Super-Macron tricolor.

É, aliás, impossível saber neste momento se Macron estará à altura dos enormes desafios que tem pela frente. Mas isto sabemos: Marine Le Pen não estaria. A diferença que tanto nos perturba em relação ao passado é que, até há bem pouco tempo, as escolhas nos países ocidentais eram ideologicamente limitadas, compostas por meras alternâncias ao centro. Esse mundo, de facto, acabou. Em vez de centro-esquerda e centro-direita, estamos a escolher entre ideologias democráticas, liberais e abertas e ideologias autoritárias, iliberais e fechadas. Felizmente, no domingo venceu a razão, a lucidez e a coerência. Enquanto assim for, não necessitamos nem de messias, nem de super-homens. Apenas de gente decente, capaz de enfrentar Le Pen, Trump ou Putin. Gente como Emmanuel Macron.  

Sugerir correcção
Ler 30 comentários