Pires de Lima: desapareceu um bastonário “sem medo de nada”

Advogado que enfrentou vários dirigentes socialistas morreu aos 80 anos, mas várias das suas preocupações continuam actuais.

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“Tinha o coração ao pé da boca. Dizia o que pensava", recorda José Miguel Júdice Rui Gaudêncio

Foi para responder a uma provocação do bastonário dos advogados que o socialista Jorge Coelho proferiu a frase lapidar que se colou não só a ele como a outros dirigentes do mesmo partido: “Quem se mete com o PS leva.”

Corria o ano de 2001 e António Pires de Lima, que estava no seu último ano de mandato, não se acobardou: desafiou Jorge Coelho a explicar-se e continuou a dizer alto e bom som o que bem entendia, como sempre fez. De mandar o primeiro-ministro António Guterres instalar uma sala de chuto no seu gabinete oficial até criticar de forma violenta o ministro da Educação Oliveira Martins, por permitir o aumento de vagas nos cursos de Direito numa altura em que já antecipava a proletarização da advocacia, foram poucos ou nenhuns os combates a que se furtou. “Não tinha medo de nada”, recorda José Miguel Júdice, que lhe sucedeu na Ordem dos Advogados.

Pires de Lima morreu neste sábado, aos 80 anos, no Hospital da Luz, em Lisboa, onde se encontrava internado desde o início da semana. A ordem que dirigiu durante três anos, entre 1999 e 2001, pediu aos colegas que fossem trajados de toga às cerimónias fúnebres desta segunda-feira .

Quem com ele privou assinala-lhe a sagacidade e o humor cáustico, que não hesitava em usar contra si próprio. “Gosta de provocar. Usa a língua como cacete. Faz frequentemente lembrar um lorde caceteiro”, descreveu Carlos Magno numa crónica escrita na altura. O advogado Godinho de Matos considera-o o último grande bastonário da classe. “O último de uma grande série”, corrobora Júdice. “Tinha o coração ao pé da boca. Dizia o que pensava e como bastonário fez os grandes combates do Estado de direito, denunciando os abusos da investigação criminal e as tentativas de instrumentalização da profissão” pelo poder político, assinala.

Acusou o Governo e a PGR

Acusou o Governo de comprar deputados, a propósito da adesão de Portugal ao Tribunal Penal Internacional, que permitiu a extradição de arguidos sujeitos a prisão perpétua. Pediu a demissão do procurador-geral da República Cunha Rodrigues. “O Ministério Público actua na convicção de que tem os mesmos poderes que eram utilizados pela PIDE e pela Gestapo, quando revela total desconsideração pelos direitos dos arguidos”, afirmava em 2003. E quando José Sócrates chefiava o Governo apodou-o de ditador, “um indivíduo impreparado para qualquer coisa que seja uma actividade política.”

Homem de direita sem nunca ter aderido a nenhum partido, teve em Garcia Pereira, do MRPP, um aliado e um amigo – ao ponto de, apesar de se considerar católico e conservador, ter chegado a ser seu mandatário quando o advogado se candidatou à Assembleia da República em 2009.

Do tempo que alguém pode ser mantido em prisão preventiva, que considerava excessivo, até à desresponsabilização dos governantes pelas decisões que tomam, muitas das preocupações que manifestou sobre a justiça portuguesa continuam actuais. Defendia que os políticos deviam ser julgados pelos erros cometidos.

Destacando também a sua coragem, outro amigo seu, Fernando Fragoso Marques, recorda como continuou a advogar mesmo depois de ter sido acometido por um AVC em 2010. Trabalhava num pequeno escritório de que fazem parte um irmão e dois filhos. “Era a sua paixão”, descreve o advogado. Nem todos os filhos seguiram as suas pisadas: um deles, a quem chamou também António, tornou-se ministro da Economia de Passos Coelho. 

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