A boca de Donald Trump deixou Stephen Colbert em apuros

Humorista fez uma piada sobre o Presidente norte-americano considerada ofensiva, e agora a autoridade que regula as comunicações vai estudar o assunto. Seja qual for o resultado, Colbert já disse que não se arrepende.

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O apresentador disse que reagiu a uma ofensa de Trump contra o seu amigo e jornalista John Dickerson Kevin Lamarque/Reuters

Um humorista entra num programa de televisão e conta uma piada. Este podia ser o início de uma anedota daquelas que ofendem sempre alguém, mas é melhor não falarmos disso na presença do norte-americano Stephen Colbert – há uma semana, o famoso apresentador olhou para os milhões de telespectadores que o seguem religiosamente no seu Late Show na CBS e disse que a boca de Donald Trump só serve para deixar entrar o pénis de Vladimir Putin. Desde então, caiu o Carmo, a Trindade, o Twitter e o Facebook: são muitos os que pedem a demissão de Colbert ou, pelo menos, exigem um pedido de desculpas público, e a América voltou a discutir os limites do humor e da liberdade de expressão.

Primeiro, o contexto: na abertura do programa da passada segunda-feira, Colbert mostrou-se indignado com a forma como o Presidente Donald Trump se referiu ao trabalho do seu amigo e jornalista John Dickerson, apresentador do programa Face the Nation ("Enfrenta a Nação"). Entrevistado por Dickerson no dia anterior, Trump tinha dito que costumava chamar ao programa dele Deface the Nation ("Desfigura a Nação").

O problema é que Stephen Colbert não gostou nada das palavras do Presidente. E resolveu defender o amigo no seu programa com um minuto de trocadilhos e outras piadas que a personagem Diácono Remédios teria interrompido um segundo depois de ter começado.

Mas houve uma parte que teve mais graça ou menos graça do que as outras, consoante os pontos de vista: "Você tem mais pessoas a marchar contra si do que o cancro; você fala como um gorila que se exprime através de linguagem gestual e que acabou de levar uma pancada na cabeça; na verdade, a única coisa de jeito que a sua boca faz é servir para deixar entrar o pénis de Vladimir Putin."

Assim que os espectadores processaram bem o que Stephen Colbert tinha acabado de dizer, começou mais uma batalha nas redes sociais – de um lado, os que pediram a sua demissão imediata pela CBS, reconhecíveis pela partilha da hashtag #FireColbert; de outro, os que aplaudiam o apresentador e até lhe pediam para ser mais ofensivo, porque era isso que Donald Trump merecia; de outro ainda, suspeitamos, estavam as pessoas que não ligam nada a estas coisas.

O facto é que Stephen Colbert não só continua a apresentar o programa, como ainda não pediu desculpas pelo que disse – ou melhor, enfiou uma espécie de retratação no meio de um monólogo em que disse que não se arrepende e em que aproveitou para fazer mais uma piada sobre Donald Trump.

Colbert enfrentou a polémica no programa de quarta-feira, e nada do que disse serviu para acalmar os ânimos. "Ainda sou eu a apresentar?", fingiu perguntar a alguém da equipa de produção. "Ainda sou o apresentador!", gritou, com os braços erguidos no ar e um largo sorriso.

"Se viram o meu monólogo de segunda-feira, sabem que eu estava um pouco chateado porque Donald Trump insultou um dos meus amigos. Por isso, no fim desse monólogo, retribuí com algumas hipóteses de insultos para o Presidente. E não me arrependo disso. Acho que ele sabe tomar conta dele – eu tenho piadas; ele tem os códigos das armas nucleares. É uma luta equilibrada. Mas, apesar de voltar a fazer o mesmo, desta vez mudaria algumas palavras que foram mais rudes do que era preciso", disse o humorista, no que parecia ser o início de uma retratação.

Mas o que veio a seguir foi, ao mesmo tempo, mais uma piada sobre a suposta proximidade entre Donald Trump e Vladimir Putin e uma resposta para os que acusaram o humorista de homofobia, por ter dado a entender que o sexo oral masculino é um acto depreciativo: "Não vou repetir a frase, mas quero deixar registado que a vida é curta, e que qualquer pessoa que expresse o seu amor por outra pessoa da forma que entender é, aos meus olhos, um herói americano."

Quase uma semana depois, a autoridade norte-americana de comunicações (a FCC) anunciou que vai ouvir melhor as piadas de Stephen Colbert para decidir se a CBS deve ou não ser multada – com a hipótese de demissão aparentemente posta de parte, e a possibilidade de um pedido de desculpa decididamente afastada, o máximo que Colbert deverá tirar deste episódio é uma crítica de mau gosto.

Para muitos analistas, o humorista recorreu mais uma vez a uma piada baixa para sacar gargalhadas fáceis.

Em 2014, quando ainda apresentava o programa The Colbert Report, fez uma piada sobre a polémica à volta do nome da equipa de futebol americano Washington Redskins que também foi considerada de mau gosto. Dessa vez, a campanha para o seu afastamento surgiu através da hashtag #CancelColbert, mas terá sido motivada mais por uma falta de contextualização do que pelo suposto mau gosto da piada.

Em resposta à polémica sobre o nome Washington Redskins ("redskins" é uma palavra hoje em dia considerada ofensiva pelos índios americanos), o dono da equipa, Daniel Snyder, criou a Fundação Washington Redskins para os Americanos Originais – na prática, usou uma palavra considerada ofensiva por uma comunidade no nome de uma organização que se destinava a beneficiar essa mesma comunidade.

A piada de Colbert teve como objectivo expor esse ridículo, ao imaginar o que seria um cenário semelhante aplicado à comunidade asiática, mas falhou porque surgiu isolada, sem o contexto dos Washington Redskins: "Estou disposto a mostrar à comunidade asiática que me preocupo com ela, apresentando a Fundação Ching-Chong Ding-Dong para a Sensibilidade dos Orientais ou lá o que é isso."

Foi esta a diferença entre a piada de 2014 e a de 2017: enquanto a primeira usou uma aparente ofensa para denunciar um caso que muitos consideraram ser de racismo, a segunda usou uma ideia considerada homofóbica (o sexo oral masculino é algo que serve para ridicularizar os envolvidos) para expor a suposta proximidade política entre os presidentes dos Estados Unidos e da Rússia.

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