O misterioso suicídio do adepto da Juventus que revelou ligação entre o futebol e a máfia

O “ultra” Raffaello Bucci tinha ligações ao mercado negro dos bilhetes e era informador dos serviços de informação italianos. A investigação à sua morte está longe de estar resolvida.

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“Ciccio” para servir de intermediário entre as bancadas do Juventus Stadium e o clube. LUSA/ALESSANDRO DI MARCO

No dia 7 de Julho do ano passado foi encontrado o corpo de Raffaello Bucci debaixo do viaduto de Fossano, em Turim, também conhecido como o “viaduto dos suicídios”. Rapidamente se concluiu que a causa da morte tinha sido essa: suicídio. Sabe-se que Bucci era adepto incondicional da Juventus, membro de uma das claques do clube, que estava envolvido num obscuro negócio de venda ilegal de bilhetes e que, ao mesmo tempo, colaborava com os serviços de informação italianos; mais recentemente, as autoridades começaram a suspeitar de uma possível ligação à máfia italiana. Por isso, e à medida que a investigação avançou, o mistério em redor desta morte aumentou e levou a que, dez meses depois, as notícias sobre esta história continuem a chegar aos jornais.

Em 2000, naquele exacto local, por cima da auto-estrada que segue até à cidade de Savona, suicidou-se Edoardo Agnelli, filho de Giovanni Agnelli, histórico presidente da Juventus, poderoso patrão da Fiat e patriarca de uma das mais poderosas famílias em Itália — até à sua morte, em 2003. As razões que o terão conduzido ao sucídio continuam, até hoje, envoltas em dúvidas. Mas as ligações ao crime organizado sempre pairaram no ar.

As similitudes entre as duas mortes podem ultrapassar as simples coincidências. O suposto suicídio de "Ciccio", nome pelo qual era conhecido entre os "ultras" da Juve, veio apenas reavivar a conversa sobre o desconhecido e perigoso triângulo entre futebol, claques e máfia. A juntar a tudo isto, soube-se na semana passada, via imprensa italiana, que Raffaello Bucci estava há cinco anos a colaborar com os serviços de informação italianos. Ou seja, funcionava quase como um "ultra" infiltrado numa missão de espionagem. No entanto, o Corriere Della Serra escreve que esse facto talvez não seja tão incomum quanto parece.

No seu derradeiro ano de vida, Raffaello “Ciccio” Bucci tinha desenvolvido uma relação com a Juventus. Relação essa que o clube de Turim classificava de “consultoria externa”. Segundo conta o El País, que teve acesso às transcrições de escutas policiais, a missão de Ciccio como infiltrado nas bancadas da Juve não parecia estar a correr bem: “Sou um homem morto” e “Enganei-me, vou acabar na prisão” são algumas das frases que se ouvem nas chamadas.

Nas últimas semanas, o actual presidente da Juventus, Andrea Agnelli, também membro da família Agnelli, admitiu que está a ser investigado pela justiça desportiva italiana por supostas ligações a grupo da ‘Ndrangheta, a mais influente associação mafiosa em Itália na actualidade. O que se tenta descobrir neste processo é o possível favorecimento na venda de bilhetes a grupos "ultras" da Juventus com ligações à organização criminosa. Uma das acusações que recai sobre o líder da Vecchia Signora centra-se sobre o facto de este se ter encontrado com um dos líderes da ‘Ndrangheta, Rocco Dominello.

Quem era Raffaello “Ciccio” Bucci

Com 41 anos, Bucci, de uma família do Sul de Itália, pai de um filho e divorciado, chegou a Turim nos anos 90 para procurar melhores oportunidades de vida. Rapidamente cresceu a paixão pela Juventus. Juntou-se aos "ultras" e entrou no rentável negócio da venda ilegal de bilhetes. Foi bem aceite nas bancadas do antigo Delle Alpi e a sua influência cresceu no violento grupo que se auto-intitula “Drugos”.

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O grupo é liderado por Dino Mocciola, que cumpriu uma pena de prisão de 20 anos por matar um polícia, tendo sido proibido de entrar em recintos desportivos. Como conta o El País, Mocciola viu em Ciccio o homem ideal para gerir o negócio ilegal de troca de bilhetes. Quando a Juventus se mudou para o Juventus Stadium, em 2008, o negócio floresceu e conheceu o seu período de maior crescimento. De tal maneira que chamou a atenção da ‘Ndrangheta, nomeadamente uma facção chamada Pesce-Bellocco, liderada por Rocco Dominello — aquele que se suspeita que se terá encontrado com o presidente do clube — e pelo seu filho, Rocco.

“Se o bolo é redondo, cortamos cinco fatias”, diz Dominello numa das transcrições das escutas citadas pelo diário espanhol. O que se pretendia era formar um novo grupo de "ultras", a ser chamado de “Gobbi”, que trataria do negócio e faria, depois, a repartição dos lucros por outras quatro organizações. O novo grupo foi fundado em 2013, e a sua estreia ocorreu durante um Juventus-AC Milan.

A polícia, já com as atenções viradas para este grupo, começou a observar os contactos entre Dominello e o responsável pela segurança do estádio, e até esporádicas comunicações com o treinador da equipa na altura, Antonio Conte.

Para conter e controlar a proliferação do crime organizado, a Juventus contratou então “Ciccio” para servir de intermediário entre as bancadas e o clube. Por esta altura, o "ultra" já estava a colaborar com as autoridades, e os rumores sobre essa situação circulavam pelo estádio. O El País leu as transcrições das escutas policiais em que o chefe de segurança e o administrador-geral do clube lamentavam tê-lo “feito trair o clube”, quando souberam a notícia da sua morte.

O início do pânico com a detenção de Dominello

No dia 1 de Julho do ano passado, foi detido Rocco Dominello, o patrão da venda ilegal de bilhetes, e o seu filho por actividades criminosas. “Bucci” foi chamado a depor. Mas ele sabia demais. E os rumores de ser um infiltrado não tinham desaparecido. Começou a ligar à família. E ao chefe de segurança do estádio: “Lixei-te, desculpa, lixei-te…”, disse-lhe, citado pelo jornal espanhol. À sua ex-mulher revelou que estava a ficar paranóico. O pânico estava, por esta altura, a apoderar-se dele. O filho também recebeu uma chamada, mas pareceu não ter percebido o que dizia o pai. O desfecho aconteceu ao meio-dia do dia 7 de Julho de 2016, seis dias depois da detenção de Dominello, e no conhecido “viaduto do suicídio”.

O Corriere Della Serra vai mais longe e, recordando declarações nos últimos meses da família à justiça, diz que "Ciccio" nunca teve a intenção de acabar com a própria vida antes do início do processo de Dominello. Ele era a peça-chave em toda a investigação – sabia demais, senão mesmo tudo sobre o mercado negro nas imediações do Juventus Stadium. O jornal italiano chama ainda a atenção para outro facto: na manhã que antecedeu a morte de “Ciccio”, o servidor utilizado para interceptar as suas chamadas deixou, de um momento para o outro, de funcionar. Por isso, nunca se saberá quais foram as últimas chamadas efectuadas pelo "ultra" da Juve nas derradeiras horas de vida. “Coincidência ou facto com relevância?”, pergunta o Corriere

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