Os emails de Macron podem ser inofensivos, mas este jogo chama-se “suspeita”

Não há indícios de que os documentos revelados na sexta-feira à noite sejam prejudiciais para o candidato francês, mas um dia de reflexão é ideal para partilhar insinuações que não podem ser verificadas a tempo.

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A segunda e última volta das eleições é neste domingo Pascal Rossignol/Reuters

Passavam três minutos das oito da noite, na sexta-feira, quando o norte-americano Jack Posobiec, uma das vozes mais estridentes daquela parte da Internet onde vivem os mais acérrimos apoiantes de Donald Trump, partilhou no Twitter um documento retirado da montanha de ficheiros sobre Emmanuel Macron que tinha sido divulgada uma hora antes. “Há por aí alguém que fale francês?”, perguntou Posobiec, em pulgas para saber o que aquela troca de mensagens iria revelar sobre o candidato presidencial francês. Mas as respostas que foram chegando eram mais um sinal de que a hashtag #MacronLeaks é uma montanha que muito provavelmente vai parir um rato: “Espero que também divulguem os emails deles com comentários sobre jogos de futebol, seriam mais comprometedores do que isto ;-)”, escreveu o utilizador Guy Yo.

Depois de várias ameaças tornadas públicas pela própria campanha de Emmanuel Macron nas últimas semanas, esta sexta-feira foram finalmente partilhados na Internet vários documentos sobre contratos, emails, fotografias e outros ficheiros enviados e recebidos por pessoas ligadas à campanha do candidato Emmanuel Macron.

Ao todo, os documentos representam nove gigabytes de dados e foram partilhados no site Pastebin por um utilizador anónimo (como é habitual nestes casos) com o título "EMLEAKS", às 12h59 de sexta-feira (18h59 em Portugal continental).

Os nomes dos ficheiros incluem os nomes de pessoas ligadas à campanha de Macron que foram alvo do ataque informático – Pierre Person, Quentin Lafay, Alain Tourret – e deixam a ideia de que contêm revelações prejudiciais para o candidato.

Mas, do que se sabe até agora – e organizações como a WikiLeaks dizem que estão a passar os documentos a pente fino –, não há nada que já não tenha sido revelado nos últimos dias: acusações sem provas de que Macron fugiu ao fisco através de uma conta offshore. No caso do email que intrigou o norte-americano Jack Posobiec, trata-se de uma troca de mensagens sobre um seguro feito na empresa Allianz para precaver a possibilidade de que Macron não tivesse chegado aos 5% na primeira volta das eleições presidenciais.

Como os documentos revelados na sexta-feira à noite (hora francesa) ainda não puseram em causa a candidatura de Emmanuel Macron da mesma forma que a revelação de emails do Partido Democrata nos Estados Unidos pôs em causa a candidatura de Hillary Clinton em 2016, a tese avançada por organizações como a WikiLeaks é a de que a divulgação pode ter sido feita por pessoas próximas da campanha de Macron, com o objectivo de vitimizar o candidato.

Na sexta-feira à noite, depois da divulgação dos documentos, a WikiLeaks foi informando os seus seguidores sobre o que ia encontrando. Às 20h31: “Alegados arquivos de email da equipa de Macron com vários gigas. Pode ser uma piada do 4chan. Estamos a investigar”; às 21h31: “Uma revelação significativa. Não é economicamente possível inventar tudo isto. Estamos agora a verificar algumas partes”; às 22h12: “Este leak maciço surge tarde de mais para alterar o rumo da eleição. A intenção por trás do momento da divulgação é curiosa.”

Sem tempo para escrutinar

Na verdade, uma divulgação deste tipo – com documentos comprometedores, irrelevantes ou ambos – dificilmente será tratada pelos jornalistas franceses a tempo de se descobrir se há alguma informação importante para os eleitores, por duas razões: a montanha de documentos foi divulgada apenas quatro horas antes do início do período de reflexão em França, o que torna praticamente impossível publicar algo de substancial que possa interferir com o rumo das eleições; e o facto de faltarem poucas horas para o dia decisivo não ajuda a que a história se espalhe e fique gravada na mente dos eleitores. O que não falta nas redes sociais são especulações, como a acusação de que Macron pode ter comprado droga, com base numa factura que nem sequer tem o nome do candidato – um dos utilizadores no Twitter brincou com a acusação, sugerindo que a factura pode ter sido enviada para a morada do Parlamento francês.

Este sábado, o jornal Le Monde fez saber que iria dedicar tempo aos documentos divulgados na sexta-feira à noite, mas sublinhou que só poderá fazer isso depois das eleições: “Se estes documentos contêm revelações, é claro que o Le Monde irá publicá-los depois de os investigar, respeitando as nossas regras éticas e jornalísticas, e sem permitirmos que sejamos explorados pelo calendário de publicação de agentes anónimos.”

Mas é também com esses dois factores que os adversários de Emmanuel Macron (internos ou externos) podem jogar – se não há nada de comprometedor naqueles documentos, pelo menos fica a ideia de que pode haver; só não há é tempo para descobrir. Foi esse o sentido de uma mensagem partilhada no Twitter por Florian Philippot, vice-presidente do partido de extrema-direita Frente Nacional, que apoia a candidata Marine Le Pen: “Os #MacronLeaks vão revelar coisas que o jornalismo de investigação matou deliberadamente? Este naufrágio democrático é assustador.”

Quanto aos responsáveis pela divulgação destes documentos, não há certezas absolutas, porque há muitas formas de esconder os rastos. Mas os dedos da campanha de Emmanuel Macron apontam todos para uma teia formada por russos, norte-americanos da chamada alt-right e nacionalistas franceses – os primeiros serão os responsáveis pela pirataria, e os restantes pelo ruído criado à volta da operação.

Grupo de hackers russos suspeito

Tal como aconteceu na campanha para as presidenciais nos Estados Unidos, entre Donald Trump e Hillary Clinton, a Rússia nega qualquer envolvimento nesta e noutras divulgações e notícias que possam prejudicar o candidato europeísta Macron e beneficiar a nacionalista Marine Le Pen.

Mas alguns especialistas, como Vitali Kremez, responsável pelo departamento de investigação de espionagem na Internet da empresa norte-americana Flashpoint, dizem que há razões para suspeitar da Rússia – ou, mais precisamente, do grupo APT28 (também conhecido com Fancy Bear), supostamente ligado à agência militar de serviços secretos da Rússia.

“Se tiver mesmo sido feita por Moscovo, esta divulgação parece ser uma escalada significativa em relação a anteriores operações russas nas eleições presidenciais nos Estados Unidos. Passa de um envolvimento centrado na espionagem para tentativas mais directas de alterar os resultados”, disse Kremez à agência Reuters.

Mas a verdade é que não é possível afirmar sem qualquer sombra de dúvidas que a ordem foi dada pela Rússia, nem que a operação foi realizada pelo APT28 – há, no entanto, indícios que levam os especialistas a admitir que esse é o cenário mais provável.

Por exemplo, é sabido que foram registados domínios na Internet semelhantes ao que é utilizado pela campanha oficial de Emmanuel Macron (mail-en-marche.fr e outros três), com o aparente objectivo de enviar emails para elementos da campanha, levando-os a pensar que se tratavam de mensagens genuínas mas que na verdade abriam brechas na segurança dos servidores. Segundo outra empresa de segurança, a ThreatConnect, o registo dos domínios semelhantes ao da campanha de Macron leva a um endereço de IP que, segundo o Departamento de Segurança Interna norte-americano, foi usado por hackers russos em outras ocasiões – entre outros indícios relatados no site Motherboard no dia 26 de Abril.

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O gráfico que mostra a força da hashtag #MacronLeaks também apresenta sinais de que está a receber um impulso decisivo através de contas automáticas, e não de utilizadores individuais realmente preocupados com a divulgação dos documentos – o que pode contribuir para dar a ideia de que o público francês está muito indignado, quando na verdade a reprodução da hashtag resulta de grandes picos seguidos de quedas abruptas, compatível com a operação deste tipo de contas falsas.

Alt-right no centro das redes sociais

O envolvimento da alt-right norte-americana neste caso ficou patente na forma como a divulgação dos documentos da campanha de Emmanuel Macron foi partilhada nas redes sociais – Jack Posobiec, o norte-americano que ficou intrigado com o conteúdo de um email que afinal tinha apenas informação sobre um seguro, é um dos mais activos na partilha da hashtag #MacronLeaks.

Posobiec apresenta-se como editor da delegação em Washington do grupo de media The Rebel, uma plataforma online de direita com sede em Toronto, no Canadá. Na sua biografia pode ler-se que foi “director de projectos especiais no Citizens for Trump, a maior organização popular de apoio a Trump nos Estados Unidos”.

Já na manhã deste sábado, Jack Posobiec partilhou uma mensagem no Twitter dirigida ao Presidente francês, François Hollande, e aos dois candidatos às eleições presidenciais, Emmanuel Macron e Marine Le Pen, com um pedido que todos sabem ser impossível de concretizar – não só porque Posobiec é um desconhecido na cena política francesa, mas também porque a lei não o permite: “Peço respeitosamente para falar perante o Parlamento francês amanhã, numa sessão aberta, sobre os #MacronLeaks.” Mas o objectivo foi alcançado – o primeiro comentário à mensagem de Posobiec é uma acusação de censura: “A França está a proibir todos os jornais de dizerem a verdade. A única coisa que nos resta é chegar ao maior número possível de franceses através do Twitter e do Facebook.”

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