E o que ficou foi um excelente videojogo

What Remains of Edith Finch é uma obra que pode ser terminada numa tarde que lhe for dedicada, mas as memórias da sua escrita e do seu design ficam como um lembrete de que a vida é uma boca que se fecha.

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What Remains of Edith Finch parece um videojogo construído a aço e a algodão – suavemente movimentando a curiosidade, sólido e seguro de si próprio. Desenvolvido pela Giant Sparrow, produtora californiana que já tinha entregue The Unfinished Swan, é uma lição sobre como conjugar design, técnica e palavras que interrompem silêncios para levarem um conto a passar uma temporada na nossa memória.

Há aquilo que se acredita ser uma maldição a correr no sangue da família Finch. Chegados à América em 1937, deixada a Noruega longe, foram vários os membros da família que morreram. Um traço comum a esta maldição é uma casa sobranceira sobre o mar, uma casa abandonada desde que a família, por incentivo da matriarca, resolveu que estava na hora de mudar de ares. What Remains of Edith Finch é o regresso a essa casa, vários anos depois.

Regressamos, como a protagonista Edith, a estas divisões encerradas e confinadas durante aquele tempo todo: abrir a porta para uma cápsula do tempo, abrir uma porta para deixar o tempo andar para trás, como uma onda que trará paz se o passado for olhado nos olhos. Edith é a esperança e a esperança de paz de espírito é uma árvore genealógica de pessoas com duas datas a sublinhar os nomes.

A espinha dorsal da obra mostra-nos a jovem a pegar em objectos que desencadeiam memórias, as memórias que acabam por ser maioritariamente os últimos momentos desses membros familiares neste mundo. Podem ser cartas, diários, pormenores que nos transportam momentaneamente para aquelas vidas que nos mostram a morte, as suas várias faces e execuções, algumas com uma enorme carga emocional – como um pai e uma filha que estavam prestes a tirar uma fotografia.

É um videojogo que faz doer, ou pelo menos, que faz o jogador dedicar algum do seu tempo a contemplar a sua existência temporária – um lembrete de que haverá um dia que não veremos a noite ou uma noite que não veremos dar lugar ao dia. E, apesar desta carga sombria, não é uma obra pertença ao campos do terror ou do suspense. Não, não comprem What Remains of Edith Finch sedentos de darem saltos no sofá ou danados à procura de uma tensão irrespirável. Para isso têm Outlast 2 e Little Nightmares, respectivamente.

E então percorremos a casa da família Finch, olhando cada pormenor e dobrando cada esquina à procura de perceber, não só o que aconteceu à família, mas qual será, afinal, o fim da viagem para Edith. Mesmo que pensem que sabem o que lhe acontece, o final tem duas revelações implacáveis, uma das quais investe sobre uma simples linha de texto deixada pela protagonista no último terço da obra. São socos emocionais desferidos não com violência, mas sim com a segurança de quem sabe que os estava a preparar durante toda a estadia do jogador na obra.

Cada metro do jogo parece ser o resultado de uma deliberação conjunta de todos os sectores envolvidos na sua criação. Como não há uma verdadeira ameaça, a Giant Sparrow sabia que tinha que executar pontos de interesse ininterruptos, dando à casa uma identidade própria capaz de surpreender pela arquitectura e pelos segredos que esconde. Não haver uma ameaça sobrenatural ou uma criatura para crivar de balas dá lugar a aulas de design – esta entrada secreta dá lugar àquela divisão e aquela divisão abre-se para o resto da estadia.

Ou seja, na prática estamos perante um ambiente controlado que se vai abrindo como uma flor, mostrando áreas sobre áreas que nos apanham de surpresa, divisões com a personalidade de cada membro, construindo carácter que é insuflado pela excelente escrita. Enquanto terminava o jogo, não houve uma vez que estes homens e mulheres e crianças parecessem saídos de um videojogo. O que Edith diz sobre cada um deles podia ser dito sobre muitos membros de muitas famílias; o que Edith diz liricamente sobre cada um deles é uma ode à estranheza que vai permeando o mundano. Uma família disfuncional de adjectivo redundante.

Deixar-nos viver aqueles últimos momentos é convidar-nos a experimentar vários exercícios de jogabilidade. Sim, a exploração da casa é feita a passo sedento do próximo ponto de interacção, mas quando o jogo nos leva a vestir outras peles, é a libertação da criatividade – seja numa vida que é uma banda desenhada, seja numa vida que é a ilustração da tarefa mundana de cortar salmão. Aliás, o jogo mostra esta rotina de uma forma brilhante, com a tarefa de cortar as cabeças do peixe a ser sobreposta a um videojogo dentro do videojogo, comprovando na prática que o cérebro consegue executar as duas em simultâneo e ilustrando de forma colorida o que é a rotina.

Um triunfo de vários vértices, What Remains of Edith Finch resolve sair de cena quando está no topo. É um daqueles exemplos que sabe perfeitamente quando tem o coração do jogador entre dedos e resolve que deixá-lo de vontade cheia chega. Na prática, é evidente que não se repete e que não prolonga a sua estadia por vales sem ponto de nota, o que é bom, mas também é verdade que pode ser terminado, explorando todos os recantos da casa e das suas áreas circundantes, numa tarde. Podia ser mais e, certamente, deixou-me com essa vontade de mais, de conhecer ainda melhor os membros daquela família, incentivando-me a levá-los a outras situações, a outros convívios porque a memória não tem que ser apenas uma cena.

Esta esterilização da área de jogo permite à produtora saber onde é que o jogador está, embrenhando-o em cenários que tem tanto de diversificados como de detalhados. Jogado numa PlayStation 4 Pro, What Remains of Edith Finch vai-nos mostrando como uma casa pode ser diversa, como os aposentos de quem morreu adensam as suas vidas. Desde livros e livros individualmente identificados a uma cena por onde costumava estar o mar, o aspecto técnico do jogo é sublime. Há uma cena na banheira, há outra por túneis escavados na barriga daquele local. Na prática, ainda que o jogo decorra dentro da casa desta família, pensar que estamos confinados a três ou quatro divisões idênticas é um erro. Cemitério? Sim. Cemitério de animais? Também.

E é uma obra sólida. Durante estas horas, não tive qualquer problema com a framerate, mesmo olhando à minha volta e vendo áreas pejadas de pormenores, com texturas ricas; áreas que transpiram identidade e carisma. O melhor exemplo é: gostei de jogar por esta casa, mas ganhei-lhe repulsa pela edificação. Alguns membros deste quadro familiar viveram em condições tão fora da estirpe das quatro paredes convencionais.

A mesma qualidade pode ser atestada pela sonoplastia. Tanto quanto o trabalho de Jeff Russo, está a vocalização de Valerie Rose Lohman, como Edith. Jovial e incisiva, há uma coesão credível. Tudo isto conjugado é, afinal, a decantação de um videojogo. Quebra com algumas das fórmulas estabelecidas, mas não é um marasmo. Não, é um exercício que alguém engendrou em nome da criatividade e executou como uma estaca tão segura da trajectória na direcção do nosso lóbulo mais emocional.

No primeiro contacto com What Remains of Edith Finch pode-se notar algum pretensiosismo. Olha este jogo armado em obra de calibre da manhã escrita num poema. Mas a verdade é que essa escrita sobranceira não é sorte de uma frase só – é um conto refinado e diverso, um desfazer do arame farpado que às vezes separa os campos técnicos da pena. O que me custou não foi explorar a casa, não foi participar nos minutos finais destas vidas, não foi o final emocional; o que mais me custou em Edith Finch foi ver os créditos e saber que ficava com estes fantasmas incandescentes mais algum tempo, todo o tempo que a beleza necessitar para morrer.

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