"O Estado passou a ter a obrigação de propor uma reestruturação da dívida"

Francisco Louçã chama-lhe um "primeiro passo de gigante": o PS, pela primeira vez, defende uma reestruturação da dívida. E o Governo terá que a propor em Bruxelas. "Não é palavras ao vento", diz em entrevista.

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"O Estado passou a ter a obrigação de propor uma reestruturação da dívida"

O Tratado Orçamental é inviável e Portugal precisa de uma reestruturação da dívida, insiste Louçã, repescando as conclusões do relatório do PS e BE. Agora é preciso defendê-la em Bruxelas.

Podemos dizer que, neste relatório, o Bloco de Esquerda pôs na gaveta uma proposta mais extremista que previa um corte na dívida líquida?
Este relatório tem duas enormes vantagens para o debate público que são novidade: a primeira é que o relatório conclui que não é sustentável, nem económica, nem política e democraticamente, um percurso longo de elevadíssimos saldos primários — que quer dizer simplesmente austeridade e um enorme abuso de impostos. Esse caminho não é viável.

É uma novidade, no sentido em que o PS, enquanto partido, se associa a essa tese?
Bom, o relatório compromete os partidos que o assinam…

Mas essa já era a tese do Bloco de Esquerda...
Era a tese em geral dos economistas que olham para a realidade. Aí creio que não havia grande debate entre economistas.

Havia o manifesto de 2014...
Mas isso refere-se à dívida. Estou a falar da viabilidade de um plano de longo prazo que é o Tratado Orçamental. Esse tratado não é viável, o que ele impõe a Portugal é um sacrifício de tal modo grave que só pode perturbar a democracia e diminuir a economia portuguesa. É uma sangria, empobrecimento permanente, não é viável, essa é a primeira conclusão. E a segunda é que o relatório apresenta uma proposta de reestruturação da dívida. O PS nunca o tinha feito até hoje, nunca. E agora, ao fazê-lo, introduz no debate político um compromisso para si próprio, que é o compromisso do partido do Governo, de o apresentar perante as autoridades europeias.

Mas é uma proposta, apesar de tudo, muito mais suave do que aquela que era a proposta original do Bloco, que se tenta a acomodar às regras da UE...
É uma proposta diferente das que o BE tinha feito, estudava outros cenários. O PS nunca tinha feito. 

Portanto, encontraram-se num cruzamento em que o BE teve que pôr algum extremismo na gaveta...
O único extremismo é a austeridade. Procurar soluções prudentes, porque não há nenhuma solução que não seja negociada… As soluções anteriores do BE eram para uma negociação. Se essa negociação falhasse, exigir-se-ia a saída do euro, mas ela própria negociada. Agora, o que esta proposta faz é um passo de gigante. O primeiro passo de gigante, porque ele corta 72 mil milhões na dívida, por via da monetarização da dívida que está no programa de compra de activos (PCPP), do Banco Central Europeu, e por via da redução efectiva do valor presente da dívida. Ouvi um dirigente político dizer que eram micro-soluções e migalhas. Eu acho extraordinário, porque são 72 mil milhões, ou seja, 39 pontos percentuais do PIB que são abatidos na dívida, se uma solução destas resultar. É um enorme passo do ponto de vista da capacidade das contas públicas.
Desse ponto de vista, repare: para o BE são duas vantagens: primeiro é que tem que haver uma reestruturação; segundo é que a UE tem que responder perante essa [proposta de] reestruturação. Portanto, é preciso dar esse passo; se UE o fizer, muito melhor para Portugal, ganhamos 72 mil milhões.

E se não o fizer?
Se não o fizer, temos que procurar outras alternativas, é preciso procurar outros caminhos. O que Portugal não pode aceitar é degradar a sua democracia ao ponto de perder capacidade de uma economia que responde pelos seus.

E essas alternativas continuam a poder passar pela saída do euro?
Na política, é preciso dar passos seguros em cada momento. O que aconteceu com este relatório é que, pela primeira vez, passou a haver uma posição maioritária na política portuguesa, porque o acordo entre o PS e o Bloco de Esquerda representa uma maioria na política portuguesa (penso que na população portuguesa também; as sondagens o dirão). Mas a maioria na política portuguesa é a favor de uma reestruturação. Isso é um enorme compromisso. O PS utilizou aquela coisa “bom, foi o partido que assinou, não foi o Governo”. É verdade, mas eu tenho esperança fundada de que o partido peço ao senhor secretário-geral para dar uma palavrinha ao primeiro-ministro a este respeito e, portanto, que a proposta seja para ser tomada a sério. Na política, nada pode ser a fingir!

Isso significa que ainda não está completamente seguro de que a proposta seja para ser tomada a sério pelo Governo...
Tem que ser tomada a sério: os compromissos são compromissos, comprometem e, portanto, obrigam a que haja um esforço no tempo próprio, enfim nos próximos meses, no tempo político que estamos a viver na UE.

Nesta legislatura?
Com certeza que sim. Repare: nós passámos esta fase de perigo, de enormes tensões, de enormes tropeções na UE depois das eleições italianas e das eleições alemãs e isso obriga o mundo europeu, que está paralisado pela dívida e paralisado pela renda financeira, a recolocar este problema. Espero que assim aconteça e as conclusões têm que ser tiradas a partir dessa experiência, ou seja, com a solidez dos factos. Isso é a garantia que tem que se dar à sociedade portuguesa: que hoje há pessoas economistas e dirigentes políticos que trabalharam, com todo o rigor, uma proposta.

O BE aceitou este relatório como um meio-termo sobre o problema da dívida. Isso significa que também já não será pela Europa que a corda rompe?
Eu não definiria este relatório como um meio-termo, definiria como um compromisso tecnicamente cuidadoso sobre um cenário que foi posto em cima da mesa.

É uma outra maneira de dizer a mesma coisa...
É um bocadinho diferente, porque pode haver outros cenários e podem, e devem ser discutidos. Há outros partidos que têm outras ideias, sobretudo de resolução da dívida. O Bloco já o fez, eu já o fiz… 

O PCP, por exemplo, não se revê neste neste relatório...
Bom, o PCP queixou-se que eram migalhas. E eu fico satisfeito, porque o PCP considera 72 mil milhões de euros de corte na dívida uma migalhazinha. Mas fico à espera que apresente também propostas, porque é um bom contributo que haja outras propostas, desde que tecnicamente bem preparadas. Eu acho que frases fáceis têm um efeito fácil num debate difícil. Para temos as coisas com a profundidade que elas merecem, é preciso estudar estas matérias, é preciso apresentar contas detalhadíssimas. 

Embora, para a opinião pública, o que fique é que o PCP se manteve com as propostas e o BE recentrou as suas propostas...
Não sei se fica isso, isso é a sua interpretação. Para mim, o que fica é que o BE conseguiu um acordo com o PS, para o que dois partidos possam trabalhar em concreto e fazer um esforço rigoroso. Em segundo lugar, que o PS foi chamado pela primeira vez ao citar uma reestruturação da dívida, isso é uma mudança total em Portugal. Não é muito fácil obrigar o PS, que é um partido maioritário do Governo, a ser condicionado à obrigação de fazer uma proposta de reestruturação da dívida. Isto muda a política portuguesa. Isso vale muito mais do que frases simples. Como lhe disse, é fácil fazer um comunicado de imprensa.

Mas depende da determinação do Governo em ir para a frente europeia... 
Com certeza, com certeza...

… E de defender aquilo que ali está...
Mas o compromisso é isso mesmo. Se não tivesse esse compromisso, de certeza que nunca faria nenhuma discussão europeia.

Mas António Costa, na verdade, já anda a dizer há dois anos que é preciso renegociar a dívida, mas apenas no contexto europeu... 
Certo, mas agora temos números. Agora já não é estarmos à espera da Europa, agora é nós dizermos à Europa que queremos um corte de 72 mil milhões na dívida. 

E acredita que vai levar esses números da Europa e os vai defender?
As minhas crenças ficam no segredo, entre mim e os deuses. Agora, o que é obrigatório é que os compromissos da política…

Mas é preciso que o próprio…
Não são palavras ao vento.

E quando é que o Francisco Louçã acha que pode haver essas circunstâncias? Neste instante, com os processos eleitorais a decorrer na Europa, concorda que não é o melhor momento... 
Agora não sabemos com quem negociar. Não sei se vamos saber daqui a alguns meses. Eu não sei se a Europa está propriamente a caminhar no sentido de ter uma liderança: Renzi e Macron, Juncker a prazo. A liderança europeia está-se a desagregar. E cada solução que aparece agrava as suas perspectivas imediatas. Mas nós falamos com quem está. E o Estado português passou a ter uma obrigação, veremos se a cumpre, tem que a cumprir se respeitar os seus cidadãos e se a política for uma coisa de gente séria. Se é, então Portugal passa a ter uma obrigação de ter uma proposta e essa proposta faz uma mudança. Nós passamos o cabo Bojador, há uma mudança total, deste ponto de vista. 

Mas quando é que acha que há essas circunstâncias na Europa, para abrir esta discussão? 
Repare: as negociações europeias, como sabe bem, são feitas de forma… mas Portugal deve desde já, o Governo deve desde já referir a proposta e discuti-la nas conversas informais e nos debates técnicos, aos vários níveis da Comissão, isso parece-me óbvio. A sua apresentação como proposta num Conselho Europeu ou num Eurogrupo, isso deve aguardar estes próximos meses para que haja uma clarificação. Mas não há nenhuma proposta que seja discutida com possibilidade de sucesso que não tenha tido um braço-de-ferro, uma preparação forte, uma insistência consistente e, portanto, um trabalho preparatório. Esse trabalho começa no dia em que ela é aprovada.

Esse trabalho preparatório é, de resto, o desafio que é deixado no relatório da dívida: que o Governo leve todos os cenários estudados e uma proposta bem preparada. Há compromisso do Governo para que esse estudo prévio seja feito antes de o momento chegar?
O que o Governo disse é o que é público. Este é um desafio para Portugal, mas é um desafio para a UE também, porque a UE fechou todas as portas sobre reestruturações, destruiu a Grécia, tentou adiar o problema italiano, tanto na banca como a dívida pública, que tem uma dimensão muito maior, colossalmente maior do que a dívida portuguesa. Nós temos dinamite com mechas acesas a correr na Europa, não só do ponto de vista político. O nosso perigo não é só Le Pen, o nosso perigo é todas as derivas políticas que ocorrem, a desagregação dos sistemas democráticos e é a economia que mata.

Se a Europa disser que não, é aí que rompe a corda desta maioria?
Esta maioria tem de se fazer com um único critério, que é resolver problemas das pessoas. Eu quero fazer parte de uma esquerda que sente que tem que trabalhar muitíssimo para ser maioria e isso é dar todos os passos e percorrer todos os caminhos, na preparação, na preparação de pessoas, na preparação de respostas, na construção da alternativas, na sua profundidade, na sua capacidade de comunicação ao país, na sua vontade de congregar forças maioritárias, nesta capacidade de estabelecer pontes, como este relatório prova que se pode fazer, para um caminho que tenha um objectivo muito bem definido. Portanto, uma política que quer responder pelas pessoas é o caminho que tem que fazer.

Que é muito difícil no contexto europeu? 
Sim, aliás, até diria mais: eu acho que é cada vez mais difícil. Há uns anos , há três anos, eu fiz com João Ferreira do Amaral um estudo sobre como é que Portugal tinha que percorrer um caminho se tivesse que sair do euro. Essa ameaça está presente cada dia na nossa sociedade e cada dia na nossa vida, e nessa matéria o que é preciso é que o único critério que conduzam não seja o da conveniência, mas darmos passos certos, seguros, para responder à crise da sociedade portuguesa.

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