Regulador na mira das construtoras por cobrar taxas sem actuar

O IMPIC estará a maximizar a receita sem controlar o cumprimento por parte das empresas de construção dos requisitos para a atribuição dos alvarás. Nova lei terá alargado demasiado a malha.

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Rui Gaudencio

A mudança da lei dos alvarás, que estabelece os requisitos para o exercício da actividade da construção, em Junho de 2015, terminou com uma regulamentação que vigorava desde 2004. Tem como objectivo transpor uma directiva e simplificar procedimentos. Mas o cenário é de que, dois anos volvidos, essa simplificação não está a funcionar e são os próprios regulados que se queixam das malhas do controlo, que agora estarão demasiado largas. O Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC), o organismo regulador que ficou com a incumbência de fazer cumprir a legislação é acusado de facilitismo, isto numa altura em que a clandestinidade é uma das poucas preocupações que colocam patrões e sindicatos do mesmo lado.

De acordo com a nova lei dos alvarás (Lei 41/2015), que fez a transposição de algumas directivas e foi apresentada com o objectivo de simplificar procedimentos ao mesmo tempo que apertava a regulação da actividade, foi ao IMPIC que coube a incumbência de garantir que as empresas que exercem a actividade, tanto no segmento das obras públicas como na área das obras particulares (onde recai o grosso da produção e trabalha 60% da mão de obra do sector), cumprem as regras. Para além de necessitarem de comprovar o seu registo de idoneidade, as empresas têm de fazer prova das suas competências técnicas, e do seu músculo económico. Esses critérios são adequados à dimensão da empresa e à dimensão da obra a que se propõe executar.

É ao IMPIC que compete garantir que as empresas exercem adequadamente a actividade de construção, tanto aquelas que pagam para ter um alvará que as habilita a exercer no segmento das obras públicas, como as que fazem construções para privados. Porém, e ao contrário da lei anterior, que impunha uma revalidação anual, a emissão do alvará é agora feita por tempo indeterminado, não definindo um período concreto para a revalidação. A actual lei define, também, um mecanismo de controlo oficioso anual dos requisitos para o exercício da actividade. 

Ao que o PÚBLICO conseguiu apurar juntos de fontes do sector, o sentimento geral é de que o IMPIC tem-se demitido de fazer este controlo oficioso desde a entrada em vigor da lei - apesar de estar a cobrar às empresas a taxa de regulação anual. Em causa está a principal fonte de receitas do instituto, que depende quase exclusivamente da revalidação anual dos alvarás e dos certificados das empresas de construção - a restante receita é assegurada pelas taxas pagas pelas empresas de mediação imobiliária. De acordo com os dados publicados pelo instituto, em 2016 as receitas foram de 8,7 milhões de euros (e as despesas foram 6,9 milhões de euros).

Cães vadios e cães sem trela

As taxas de revalidação anual variam em função da classe dos alvarás. A classe 1, a mais baixa e que habilita as empresas a executar obras até 166 mil euros, paga uma taxa anual de regulação de 225 euros. A classe 9, a mais elevada e que permite executar obras de qualquer valor, paga uma taxa de revalidação anual de 15 mil euros.

Questionado pelo PÚBLICO sobre se os requisitos técnicos e financeiros têm vindo a ser verificados, ou se o regulador se limita a cobrar as taxas, o presidente do IMPIC, Fernando Silva, recordou, em respostas enviadas por escrito, que a lei impõe critérios diferentes, que eles são verificados sempre que uma empresa pede um alvará e que o controlo anual dos requisitos deve ser feito ao longo do ano. “Ao contrário do que sucedia com a anterior lei, a nova não exige que o controlo oficioso seja realizado a todas as empresas no mesmo mês. A confusão talvez resulte do facto das guias para pagamento da taxa anual de regulação serem remetidas às empresas em simultâneo”, esclarece Fernando Silva.

O PÚBLICO confirmou junto da Confederação da Construção e do Imobiliário (CPCI) que, quase dois anos volvidos desde a entrada em vigor da lei, não foi ainda efectuado nenhum controlo oficioso.

Assim, as empresas estão a pagar taxas de regulação tendo por base um alvará que, a qualquer momento - isto é, quando o IMPIC começar a realizar o tal controlo de cumprimentos dos requisitos - pode ser revisto em baixa, daí resultando um alvará que teria uma taxa de regulação muito inferior. “O IMPIC está preocupado em maximizar a receita, sem cuidar de saber se os critérios estão ou não a ser cumpridos”, considerou, em declarações ao PÚBLICO, uma fonte do sector que pediu para não ser identificada. Da forma como está a ser aplicado, este mecanismo, alegam, gera situações injustas: há empresas a fazer grandes esforços financeiros para manterem os indicadores financeiros e os quadros técnicos adequados, mas estão a competir em pé de igualdade com empresas que descuram estas regras.

O presidente da CPCI alerta para “o profundo desajustamento da lei dos alvarás” e para as distorções que ele proporciona sobretudo na área das obras particulares. “Não há razões de ordem técnica para diferenciar os requisitos necessários à execução de obras públicas ou particulares. Ou os requisitos são diferentes se for o Estado a construir uma escola ou hospital, ou se for um privado?”, questiona Reis Campos.

O presidente da CPCI mostra-se particularmente crítico com o facto de a actual lei determinar que os requisitos de capacidade económica e financeira só serem exigidos, na actual lei, a uma empresa a partir da classe 3 (obras acima dos 332 mil euros).

Actualmente existem 21.443 empresas com alvará e destas só 6447 têm alvará entre as classes 3 e 9. “Não é razoável que 70% do universo empresarial fique dispensado do cumprimento de qualquer exigência económica e financeira”, critica Reis Campos. E, recorrendo à imagem construída de serviços municipais que saíam com o objectivo de apanhar cães vadios e ao fim do dia só levavam para o canil os animais domésticos que andavam sem trela, o presidente da CPCI alerta, sobretudo, para o problema da clandestinidade e “para as pessoas e as empresas que se mantém à margem do mercado e prestam serviços com total impunidade”. Mas, por enquanto, parece que são só os “animais sem trela” que têm sido mais apanhados, defende.

Alvarás cancelados

A actual lei não prevê, por exemplo, situações especiais para a análise das empresas que estão em processos de recuperação e que foram “declaradas insolventes há mais de nove meses”. E que são avaliadas da mesma forma que todas as outras empresas. O portal do IMPIC refere o registo de 24 empresas em processos de reavaliação, sendo que nenhum destas tem já o alvará válido - já terminou o período de nove meses.

O não pagamento da taxa de revalidação pode levar o IMPIC a cancelar o alvará das empresas. No portal do instituto dá-se nota que há 1775 empresas com alvarás cancelados há menos de um ano - e este número engloba tanto as empresas a quem o IMPIC cancelou o alvará por falta de pagamento, como aquelas que pediram o cancelamento do seu alvará.

Foi precisamente a gestão de todos os procedimentos de qualificação, licenciamento e regulação dos operadores económicos cuja actividade é regulada pelo IMPIC que esteve na base do contrato que, em Março de 2015, e ainda antes de a lei dos alvarás entrar em vigor, o IMPIC assinou com a empresa EVERIS. O contrato de quase 200 mil euros - e que está publicado do Base, o portal dos contratos públicos que é gerido precisamente pelo IMPIC -  impunha o desenvolvimento de uma aplicação que estaria a funcionar passados seis meses, chamada GESLIC. Há notas internas no IMPIC a alertar os funcionários que as tarefas eventualmente necessárias à implementação do GESLIC teriam prioridade sobre todas as outras. Dois anos depois, ainda não está em funcionamento, admite o presidente do organismo. “Está a decorrer um contencioso com a empresa, por iniciativa do IMPIC”, esclarece Fernando Silva.

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