Nada a ver com chapéus

A pintura de José Loureiro tem-se construído num fazer sem referente exterior, mesmo quando alguns signos nos recordam formas conhecidas.

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Há um diálogo silencioso entre o pintor e aquilo que ele faz, um diálogo que não passa pela palavra mas pela interrogação muda que a imagem que vai criando lhe devolve

O título desta última exposição de José Loureiro, Boné, é desconcertante. Ainda mais se lhe acrescentamos a primeira frase do texto que o artista escreveu para a folha de sala: “Boné é uma exposição de sinapses-mortas”. Sendo a sinapse, mais especificamente uma “sinapse-morta”, para além de um termo vindo da ciência, relacionado com os impulsos nervosos, o título que o artista dá a todas as pinturas presentes, não ficamos aparentemente mais elucidados sobre aquilo que nos pretende contar.

A menos que não pretenda contar coisa alguma. A pintura de José Loureiro tem-se construído num fazer sem referente exterior, mesmo quando alguns signos nos recordam formas conhecidas. Neste caso, encontramos as intersecções de rectas e elipses, os quadrados e rectângulos, as grelhas negras que parecem conter e organizar a matéria pictórica e a cor. O artista constrói estas formas com réguas  que lhe permitem obter um traço preciso que, com frequência, se associa a manchas com menor definição, a fundos lisos, à ilusão de uma figura.

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E é tudo­ embora nada do que aqui se escreveu dê conta da grande qualidade da obra deste artista. Suspeitamos que há mais, muito mais do que aquilo que as palavras conseguem dizer. Suspeitamos mesmo que o título escolhido, Boné, que o artista nos conta que demorou dois meses a escolher, só foi seleccionado porque não fornece absolutamente nenhuma pista para uma possível interpretação da pintura que aqui está. A pintura não tem a ver com chapéus, sejam eles cartolas de onde se tiram coelhos ou bonés para usar na praia. A pintura pura e simplesmente é. E o artista, este artista, não quer, desconfia de, não pode, não está de todo interessado, odeia mesmo qualquer interpretação prévia que ele próprio possa encontrar para aquilo que faz.

Voltemos ao título das pinturas. Estas sinapses, na realidade, surgiram numa outra exposição que o artista fez, Rivais, na Appleton Square, há pouco mais de um ano. Na altura, publicou uma espécie de manifesto artístico sobre o “Sinapsismo”, reivindicando já a autonomia da pintura em relação à interpretação. As “sinapses-mortas” de Boné acrescentam um novo ponto de vista a essas declarações, já que, por serem mortas, impedem toda a comunicação. Não é possível explicar e esgotar o sentido da pintura, já que de certa forma a linguagem que ela usa não é a linguagem verbal, e vice-versa: há um diálogo silencioso entre o pintor e aquilo que ele faz, um diálogo que não passa pela palavra mas pela interrogação muda que a imagem que vai criando lhe devolve incessantemente.

E contudo, quando olhamos para estas obras de Loureiro, detectamos constantes que teremos que referenciar obrigatoriamente. Em primeiro lugar, há em todas elas um quadrado ou um rectângulo negro. Ora, o Quadrado Negro sobre fundo branco de Malevitch, como as formas geométricas e dinâmicas que o suprematismo russo dos anos 10 e 20 do século passado apreciaram, parecem ressurgir, apropriados e retrabalhados, nos trabalhos deste Boné. E não só: José Loureiro afirma-nos que, tal como os artistas da revolução soviética, também Matisse, o pintor da cor e da alegria de viver, tem para si uma importância enorme. E interroga-se: “Se a cor que sai do tubo tem uma pujança enorme, se eu a ponho sobre a tela e me aparece uma borrada, como é que vou fazer, tal como Matisse o fez, para lhe voltar a dar a força que ela parecia ter inicialmente?”

Como é evidente, também aqui o mais importante não é responder, mas perguntar. Como na pintura que faz, José Loureiro acha que o processo é tanto ou mais importante que o resultado final. Um processo que é sobretudo tempo, esse “transeunte ubíquo e judicioso” que acaba sempre por apartar o contingente do essencial. A procura dessa essência pelo pintor, essa, não tem fim. Nem tempo que se possa medir.

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