Elogiada pela CNN, a noite lisboeta já vai com mais de dois séculos no bairro de sempre

Foram chegando ao Bairro Alto e ali se instalaram. As gentes do mar vieram para ficar e os nobres fugiram. Depois chegou o fadista, a prostituta e o jornalista. Promoveram a agitação nocturna e a partir daí nunca mais parou.

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Além das três personagens, os teatros também deram muita vida nocturna do Bairro Alto PEDRO CUNHA /Arquivo
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A vida boémia no Bairro Alto não é de agora. Foi há mais de 200 anos que o bairro lisboeta começou a dar os primeiros passos na agitação da vida nocturna. Os principais impulsionadores do movimento noctívago foram o fadista, a prostituta e o jornalista. Mas já lá vamos.

O Bairro Alto foi construído no século XVI. O rei D. Manuel I teve de “pôr mãos à obra” e planificar um projecto urbano que desse casa à população que não parava de aumentar na era dos Descobrimentos. A cerca medieval fernandina foi ultrapassada e a parte sul do bairro, a chamada Vila Nova de Andrade, foi a primeira a ser edificada.

A vinda dos jesuítas para a Igreja de São Roque, uma das primeiras igrejas da Companhia de Jesus no mundo, fez a zona norte do bairro ganhar forma no final do século XVI. Os nobres aproveitaram a boleia e instalaram-se na mesma área. A parte mais ventilada do bairro, conhecida por Bairro Alto de São Roque, passou a ser frequentada pelas classes mais altas e a parte sul por todo o tipo de gente, dos artífices aos pescadores.      

A historiadora Rosa Fina (IHC-FCSH/Nova e CLEPUL) estudou a transformação da noite lisboeta entre os séculos XVIII e XIX e durante a conferência que deu no ciclo de palestras sobre “Novos estudos & novos olhares sobre a cidade: Lisboa do Terramoto à Revolução de Abril”, citou Baltasar Teles, historiador e filósofo português do século XVII: “Nesta nova cidade edificada, os cerrados desabitados se mudaram em edifícios grandiosos, cheios de gente nobre e de fidalgos ilustres; os valados toscos se trocaram em fermosas ruas; o campo se fez cidade; o monte se converteu em corte; e o sítio deserto se viu mudado em uma copiosa povoação”. Baltasar Teles refere-se essencialmente à parte norte do bairro, que hoje em dia, é o que representa a zona da Travessa da Queimada para cima.

O bairro era um exemplo notável de uma nova urbanização. Estamos no século XVII. As ruas largas e perpendiculares e as fachadas ordenadas e regularizadas nunca antes vistas deslumbravam e enchiam as medidas a quem lá passava.        

Contudo, o cenário mudou no século XVIII, mais precisamente em Novembro de 1755. O terramoto aterrorizou a nobreza que, amedrontada, vendeu, arrendou e abandonou as suas casas para fugir em direcção à zona ocidental da cidade. Embora o Bairro Alto tenha sido muito pouco afectado pelo sismo, esta classe quis ir ao encontro da família real. A zona nobre do bairro foi gradualmente deixando de o ser. As classes mais baixas foram-se apoderando e passaram a dominá-la.

Mas o aparecimento de um triângulo social, que predominou principalmente na segunda metade do século XIX, veio dar ao bairro a dinâmica que precisava e tornou-o, até hoje, no centro boémio da capital.

Muito longe da imagem que hoje associamos ao fadista, este era uma figura temida mas também central nesta mudança. Sempre com uma guitarra e a “fazer chinfrim”, era um insulto à ordem e aos bons costumes, que todos temiam e até os polícias ignoravam os seus distúrbios para com eles não se envolverem. “Na imprensa da altura, há sempre um fadista com uma navalha envolvido em qualquer coisa com muito sangue”, conta a historiadora Rosa Fina. Com uma presença muito forte e territorial, o fadista pertencia às classes mais pobres do bairro e estava “frequentemente envolvido em redes de prostituição, roubos e assassinato”, acrescenta a historiadora.

Outra figura essencial para a construção da boémia nocturna do bairro foi a do jornalista. Em meados do século XIX, dezenas de jornais e tipografias ocuparam a zona das cavalariças e cocheiras de casas apalaçadas das famílias que fugiram no século XVIII, visto que “eram adaptáveis às máquinas que eram necessárias para estes profissionais”, explica Rosa Fina. A dinâmica nocturna da realização e impressão do jornal trouxe uma nova vida ao bairro, tendo também surgido tabernas e cafés para discussões entre actores, políticos e críticos, que para ali foram atraídos pelos jornalistas e tipógrafos.

A terceira figura que deu vida ao bairro de noite foi a prostituta, uma das principais personagens do século XIX e do início do século XX: todos a queriam analisar e compreender. A prostituição foi legalizada em meados do séc. XIX, em áreas confinadas e o Bairro Alto era uma das áreas em que era legal. 

E finalmente fez-se luz nas noites de Lisboa

A noite de Lisboa esteve às escuras até ao século XVIII e a criminalidade dominava a cidade durante o período nocturno. Em 1760 foi criada a Intendência Geral da Polícia e os Quadrilheiros, explica Rosa Fina, “homens comuns, escolhidos pela sua seriedade” davam conta de ocorrências nas diferentes zonas da cidade. Porém, a marginalidade, a insegurança e o medo do desconhecido continuava a predominar e os lisboetas temiam sair de casa à noite. Também acrescia o medo de figuras mitológicas como o lobisomem, e de superstições, bruxarias, casas assombradas e ditados sobre o imaginário nocturno, tornando a noite suspeita e perigosa.

Em 1780, o intendente Pina Manique instala a iluminação por lamparinas de azeite. Esta reforma gerou muita revolta e desordem visto que os lisboetas tinham de pôr a mão ao bolso e pagar a luz em dinheiro ou azeite. Os candeeiros foram vandalizados e a criminalidade não diminuiu como era esperado. E 12 anos depois, Lisboa voltou a apagar as luzes.

Os assaltos e crimes voltaram a crescer e foi imperativo que, em 1801, a iluminação regressasse. Passados 47 anos surge a luz a gás e apesar das dúvidas sobre os sítios a iluminar e até sobre o perigo que o gás teria para a saúde pública, a iluminação, desta vez, veio para ficar e incentivou ao aumento daqueles que se aventuravam na noite, quer os frequentadores de teatros ou de soirées, quer os que apenas passeavam, o que acabou por alargar as horas de ócio e cultura e fez nascer uma nova faceta da cidade: a da Lisboa boémia. Uma característica hoje elogiada pela CNN quando considera a capital portuguesa como a mais cool da Europa.

Texto editado por Ana Fernandes

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