Nos umbrais da guerra (em sentido literal)

Se Macron não for capaz de apresentar uma visão convincente para a França e para o seu lugar na Europa, Le Pen pode vencer. Repito: pode vencer. E por isso esta é uma semana de angústia, de inquietação, de desassossego.

1. Esta semana que antecede a segunda volta das eleições presidenciais francesas é uma semana particularmente difícil. Quase todos dão como certa a vitória de Emmanuel Macron, com mais ou com menos diferença para Marine Le Pen. Mas em caso algum se deve ter isso por garantido. Le Pen é uma candidata muito experiente e que, apesar das suas ideias populistas e extremistas, conseguiu uma aura de credibilidade. Nada tem a ver com o estilo Trump, Wilders, Grillo ou do seu pai – que, mesmo assim, não deixaram de, num ou noutro momento, acumular vitórias. É muito mais sofisticada, muito mais articulada, muito mais convicta, muito mais perigosa portanto. Quem julga que a contenda está ganha, engana-se. Se Macron não for capaz de apresentar uma visão convincente para a França e para o seu lugar na Europa, Le Pen pode vencer. Repito: pode vencer. E por isso esta é uma semana de angústia, de inquietação, de desassossego.

2. E, no entanto, na sombra, muito na sombra, há uma porção da Europa que caminha aceleradamente para a guerra. Para a guerra em sentido literal. São os Balcãs e, designadamente, as antigas repúblicas jugoslavas que não fazem parte da União Europeia. Para quem, por dever de ofício (por ter o pelouro da “filiação” – “membership” – na presidência do PPE) tem de acompanhar de perto a vida política interna desses países e tem de os visitar de tempos a tempos, a situação é alarmante. O caso mais grave é o da Macedónia – da antiga república jugoslava da Macedónia –, onde a etnia eslava cristã e a etnia albanesa muçulmana se digladiam violentamente. O país, totalmente contaminado pela corrupção, está à beira do caos e da guerra civil. Sem qualquer exagero ou hipérbole, a guerra está iminente.

3. Neste momento, o factor de maior perturbação é a ambição do vizinho albanês. Os líderes albaneses sonham com a criação da Grande Albânia, que incluiria parte da Macedónia e o Kosovo. Todos os dias a Albânia intervém nas lides políticas macedónias, incendeia e exacerba as posições contrastantes. Os albaneses – e os macedónios albaneses – estão a ser directamente patrocinados por Erdogan e pela Turquia, que sonha, por sua vez, com o estender do velho e longo braço otomano. A inspiração e conspiração turca é completada pelo suporte financeiro da Arábia Saudita e do Qatar, que não cessam de inundar os seus aliados com recursos monetários. Os protagonistas do Golfo actuam basicamente no domínio religioso, enviando os religiosos wahabitas para todas as mesquitas e pagando quantias mensais relevantes (na casa dos 100 euros) às famílias muçulmanas que obriguem as suas filhas e os seus filhos a adoptar os preceitos mais fundamentalistas (designadamente, em sede de indumentária e de prática religiosa). Os macedónios eslavos, de religião ortodoxa, recebem, pelo seu lado, o apoio da Sérvia (também impregnada do sonho de, mais dia menos dia, restaurar a Grande Sérvia). E com a ajuda sérvia vem naturalmente o alto patrocínio da Rússia e de Putin. Putin e Erdogan jogam no tabuleiro balcânico com todas as pedras e já sem nenhuma cerimónia ou disfarce. Aqueles que crêem que há uma santa aliança entre o czar e o sultão, também podem desenganar-se. Não é necessário lembrar que, ainda muito recentemente, foi a Turquia que documentou e certificou o ataque químico do Governo sírio, algo que não poderia desagradar mais a Moscovo. Mas basta visitar os Balcãs para compreender como a Rússia e a Turquia, os seus aparelhos de influência e as suas máquinas de propaganda, se enfrentam no terreno.

Importa perceber que se a Albânia interferir no conflito civil macedónio, a Sérvia reagirá imediatamente. A Sérvia, de resto, já só aguarda esse pretexto para entrar no Norte do Kosovo e descer até à Macedónia, recuperando assim a parcela de terra onde se formou a sua “alma nacional”. E, nesse caso, Albânia e Sérvia serão os procuradores encartados da tensão entre Turquia e Rússia.

4. Quase ao pé do desastre está ainda a Bósnia-Herzegovina com a sua presidência tripartida – muçulmana, sérvia e croata –, onde têm assento três políticos do pré-guerra. Também aqui os sauditas investem fortemente, transformando os arredores de Sarajevo num novo destino turístico para a sua classe média e numa ilha de fundamentalismo religioso empedernido. Os líderes bósnios muçulmanos visitam Ancara e Erdogan todos os meses. Os sérvios, praticamente autodeterminados na República Srpska, já só dialogam com Belgrado e Moscovo. Os croatas recebem passaporte da Croácia para poderem emigrar para a União Europeia como cidadãos europeus. Na federação bósnio-croata, os alunos muçulmanos têm aulas de manhã e os alunos católicos à tarde, de forma a não se encontrarem. A convivência entre jovens das três comunidades foi reduzida a zero, justamente nos antípodas do que se passava nos tempos da federação jugoslava. No início de 2016, os sérvios bósnios promoveram um referendo para criar o seu feriado nacional, o que, para lá de ser declarado inconstitucional, foi visto como um ensaio para a secessão. Como resposta, o presidente bósnio muçulmano recorreu, no último dia possível (28 de Fevereiro passado), da decisão do Tribunal da Haia que absolvia a Sérvia de apoio directo ao massacre de Srebrenica. Fê-lo à revelia dos outros dois membros do colégio presidencial e entretanto não teve sucesso, mas incendiou por completo as já periclitantes relações políticas. Com a emulação turca e russa, com uma enorme passividade europeia, nunca as coisas estiveram tão mal. A Bósnia caminha para o desastre e não se vê quem possa travar o reacender da guerra.

A União Europeia, centrada nos seus problemas, adormeceu na região, descansando numa ajuda financeira que todos aproveitam mas que nenhum agradece. O esquecimento a que votou os Balcãs deixou todo o terreno à Rússia, à Turquia, ao Golfo e até à China. Esse olvido vai ser pago com o sangue das populações locais e com uma enorme crise de refugiados. É tarde, bastante tarde.

 

SIM E NÃO

SIM. Papa Francisco. A visita ao Egipto foi um grito de alerta para o abandono a que foram votadas as comunidades cristãs do Próximo e do Médio Oriente. Sempre profético.

NÃO. Theresa May. A Primeira-Ministra britânica andou bem ao convocar eleições. Mas a campanha está a acender a retórica e a endurecer as posições antieuropeias. Assim, ainda acaba a perder margem negocial.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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