A importância dos rituais e a natureza dos extremos

Cá como em França, há sinais que nos vêm lembrar o que tendemos a esquecer.

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1. Percebo que haja a preocupação de manter viva a memória de Abril, para lá da sessão solene da Assembleia da República. Há mil maneiras de o fazer. Mas uma coisa não impede a outra. A cerimónia do Parlamento, por definição a casa que representa o povo na sua pluralidade, num clima de cravos vermelhos e de pluralismo de ideias, é uma tradição que deve ser mantida. A liberdade é o valor dos valores, aquela que nos une, sejam quais forem as nossas posições políticas. Lembra o acto fundador da nossa democracia. Não tem nada a ver com os anos seguintes, em que foi preciso lutar por ela para garantir que abriria espaço a uma democracia liberal que nos devolveria ao mundo livre.

Ainda não consegui perceber, e já lá vão tantos anos, por que razão os deputados dos partidos de direita insistem em deixar as lapelas vazias. Se não há donos dessa “madrugada límpida” que nos libertou para escolhermos o nosso destino, deixá-la apenas nas mãos dos partidos da esquerda, moderada ou radical, sempre me pareceu um absurdo. E mesmo aqueles que ainda vêem na descolonização uma tragédia evitável para as suas vidas, deviam fazer um esforço para compreender que foi a ditadura que impediu uma transição pacífica para a independência, mantendo a guerra colonial até ao último dos seus dias. O resto foram as circunstâncias da Guerra Fria. Foi a guerra colonial, injusta e fora do tempo, que também impediu uma transição “negociada” (como a espanhola) do anterior regime para o actual. Mesmo assim, conseguimos o “impossível”: reconquistar a liberdade graças à revolta de muitos oficiais milicianos e do quadro contra uma guerra sem fim e sem sentido, que nos isolava do mundo, sem cair na tentação de um regime tutelado pelos militares ou numa mera extensão da União Soviética, que mataria a liberdade num segundo. 

Foi, por isso, reconfortante que os deputados do PSD e do CDS-PP lembrassem o grande ausente, aquele a quem devemos, em primeiro lugar, a vitória nesse combate. Mário Soares nunca, mas nunca, vacilou quanto ao destino da Revolução dos Cravos, conduzindo-a de regresso à democracia e à Europa. Foi uma homenagem digna a quem, como Marcelo diz sem estados de alma, “era o melhor de nós todos”. Chegará o dia em que o BE e o PCP se juntem a esta homenagem? Dificilmente. É lamentável o seu silêncio e quer dizer imenso sobre a sua natureza.

2. Foi “soporífera” a sessão do dia 25 no Parlamento, dizem alguns. Não houve “guerras” de palavras ou discursos presidenciais destinados a tombar governos. Muitos vê-la-ão talvez como a acalmia que precede a tempestade. Vejo-a como uma manifestação da razoável maturidade da nossa democracia, com um Presidente e um chefe de Governo de partidos rivais que conseguiram criar um clima de estabilidade política e de algum optimismo, num país que prefere demasiadas vezes dizer mal de si próprio, que sofreu as duras penas da austeridade sem ver (ainda) grandes resultados, mas disposto a seguir em frente.

Marcelo voltou a lembrar que, até agora, o populismo e o nacionalismo que ensombram a paisagem política de demasiados países europeus ainda não nos contagiaram. Deve-se, porventura, à vacina da ditadura ou à transformação do Partido Comunista num partido de protesto, em que as raízes ideológicas, já fora do tempo, ainda temperam um nacionalismo latente, e que o primeiro-ministro teve a ousadia de tentar integrar no mainstream. Deve-se também ao facto de os socialistas portugueses, vacinados definitivamente contra as tentações esquerdistas de alguns dos seus pares europeus, manterem um score eleitoral suficientemente confortável para não se sentirem ameaçados pela esquerda radical (como acontece em Espanha ou aconteceu na Grécia), desafiando-os, pelo contrário, para participarem no sistema político democrático em que vivemos.

Aborrecida a nossa democracia? Antes isso. Temos ainda desafios tremendos pela frente? Temos. Mas nenhum deles se resolverá através do populismo ou do nacionalismo, do extremismo da direita e da esquerda, nas suas formas mais ameaçadoras ou exacerbadas.

3. Entretanto, cá como em França, há sinais que nos vêm lembrar o que tendemos a esquecer. Como é possível que Jean-Luc Mélenchon considere Macron e Le Pen como equivalentes morais, farinha do mesmo saco, como se diria por cá, “blanc bonnet ou bonnet blanc”, como dizem os franceses? A História do século XX ensina-nos até que ponto foi trágica esta perigosa identificação durante a República de Weimar, abrindo as portas a Hitler, quando os comunistas alemães olhavam para a social-democracia como uma espécie de fascismo bem comportado. Le Pen representa uma escolha que é moralmente insuportável (mesmo que isso não signifique que os sete milhões de franceses que votaram nela comunguem da sua ideologia), na sua versão hard ou na sua versão soft.

O racismo, o verdadeiro nome daquilo que designamos com algum pudor de xenofobia, é uma doença terrível, porque destrói o único princípio civilizado que podemos admitir: que os homens nascem iguais. O nacionalismo, como a Europa aprendeu da forma mais trágica, é o ódio ao outro, dentro ou fora das nossas fronteiras, que quase sempre acaba por conduzir à guerra. Não há justificação, por mais elaborada que seja, quando a Frente Nacional dificilmente domestica a sua tentação negacionista sobre o Holocausto. Exagero? Talvez. Mas, como lembra no Guardian Hadley Freeman, foi Le Pen que introduziu o tema na campanha quando resolveu dizer que os cerca de 13 mil judeus que a polícia francesa reuniu no Vel d’Hiver, em Paris, para seguirem o seu destino fatal, não foi responsabilidade da França. Sabemos tudo isto racionalmente e há muito tempo.

Escrevi várias vezes que a distância entre a Frente Nacional e a Frente de Esquerda era muito pequena. Não precisávamos do cartaz de Le Pen mostrando até que ponto os programas dos dois partidos se tocam. Logo à cabeça, ambos são contra a União Europeia e a NATO. Podíamos acrescentar outros pontos comuns ainda mais chocantes, como a amizade com Putin, a raiva contra Merkel, o apoio aos regimes mais bárbaros. Mesmo assim, quando as coisas assumem esta clareza, não consigo deixar de lado a indignação. Por cá, o Bloco fez questão de nos lembrar que partilha inteiramente do pensamento dos seus amigos franceses.

Macron é rico e foi banqueiro? Parece que Mélenchon, que não foi banqueiro, é mais rico do que ele (é verdade que já teve mais anos para poupar). É um “neoliberal”? Não é. Mas sê-lo não é pecado, é apenas uma opção política que podemos combater todos os dias. Macron faz parte daqueles que consideram que não há alternativa melhor do que a europeia. Nos últimos dias da campanha lembrou por várias vezes a frase que François Mitterrand, já de saída, pronunciou diante do Parlamento Europeu: “O nacionalismo é a guerra.” Era este sentimento que partilhava com Helmut Kohl e que os uniu até ao fim. Apesar de saber que é impopular defender a abertura aos refugiados e aos imigrantes, Macron disse de Angela Merkel que salvou a honra da Europa ao aceitá-los. É uma afirmação corajosa nos dias que correm. E, sobretudo, provou que a inevitabilidade dos extremos não existe, quando se apresenta uma alternativa. Foi isto, aliás, que estragou a vida a Mélenchon.

Tempos difíceis, estes em que vivemos. Daí a importância dos rituais democráticos: ajudam-nos a perceber aquilo que é essencial. Tudo somado, ainda bem que o Bloco e o PCP não quiseram participar na breve homenagem a Mário Soares. Serve para nos lembrarmos do que continuam a ser, mesmo quando têm a oportunidade de participar numa governação democrática.

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