O mundo, como está, é uma enorme estaca

O mais celebrado cantor catalão trocou de ribaltas: deixou a música e abraçou a política. Uma e outra unem-se, porém, na sua história pessoal como na da Catalunha. É de ambas que nos fala Lluis Llach, numa entrevista em Lisboa, onde foi homenageado.

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É o maior cantor da história da Catalunha. Ou era, porque em 2007 decidiu retirar-se da ribalta musical para viver e aprender a viver o “terceiro acto” da vida. Lluis Llach, de seu nome Lluis Maria Frances de Paül Llach i Grande, filho de uma professora e de um médico de província, nasceu em Verges, Gerona, em 7 de Maio de 1948. A poucos dias de completar 69 anos, foi homenageado em 20 de Abril, em Lisboa, pela Sociedade Portuguesa de Autores, que o distinguiu com uma medalha de honra. Foi aliás a convite de José Jorge Letria, actual presidente da SPA e à data também cantautor, que Llach actuou em Portugal pela primeira vez, em Maio de 1974, logo a seguir ao 25 de Abril, num dos “cantos livres” que se realizaram no Teatro São Luiz. Daí nasceu uma canção, Abril 74. Mas se há canção que o imortaliza é L’Estaca, onde ele fala de uma estaca “a que estamos todos atados”, impedindo-nos de andar, e no refrão, diz: “Si estirem tots, ella caurà/ i molt de temps no pot durar,/ segur que tomba, tomba, tomba / ben corcada deu ser já” (“Se todos puxarmos, ela cairá/ Muito tempo não pode durar/ Seguramente que cai, cai, cai/ Bem podre deve estar já”).

L’Estaca foi adaptada como hino pelo Sindicato polaco Solidariedade e serviu de bandeira à revolução democrática tunisina. De tal modo a canção se tornou popular que, proibido de cantá-la em público pela ditadura franquista, Lluis Llach assistiu certa noite de 1969, num concerto seu em Barcelona, ao emocionante espectáculo de ouvir o público cantá-la do princípio ao fim enquanto ele ali permanecia, por imposição da censura, em silêncio. Mas foi como se a cantasse, com a força de milhares de vozes.

Afastado da música e do canto, Llach é desde 2015 deputado ao parlamento catalão pelo Junts per Sí, uma “candidatura da sociedade civil” com o apoio da Convergència Democràtica de Catalunya e da Esquerra Republicana. Nesta entrevista, feita em Lisboa pouco antes da cerimónia que o homenageou, Lluis Llach fala do seu percurso e das razões que o mantêm activo e atento ao mundo.

Começou a tocar piano muito cedo. Foi por influência da sua mãe?
A minha mãe era professora, e fez a sua formação durante a república espanhola. Daí o seu empenho em que os filhos, além da escolarização normal, estudassem música. Eu comecei aos 4 anos, a aprender abecedário e solfejo praticamente no mesmo dia. Isso influenciou, e de forma magnífica, a minha vida, pois não o fiz com nenhum esforço.

Quando foi aluno interno no colégio de La Salle, em Figueres, Gerona, onde entrou aos 9 anos, diz-se que passava muito tempo isolado ao piano. Era uma obsessão?
A minha obsessão não era tanto tocar piano mas fugir a jogar futebol. Como só havia um piano, ao lado da cozinha, e eu tinha muito boas relações com a pessoa que zelava por ela, se durante os recreios eu tinha de ir jogar futebol escapava-me para tocar. Só que deixei de ter professor de piano, e a pequena técnica que aprendera dos 4 aos 10 anos foi-se diluindo aos poucos. O que fez com que fosse cada vez mais difícil ir tocar piano quando havia futebol. Até que encontrei uma solução: passei os conhecimentos da mão esquerda para uma guitarra (os acordes, as harmonias) e os da direita para a voz. E foi assim que, sem querer, me aproximei da formulação do cantautor típico.

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Começou a aprender abecedário e solfejo praticamente no mesmo dia, com 4 anos dr

Nas suas canções há várias referências às suas raízes. Como Verges, onde nasceu, ou Porrera, onde nasceu a sua mãe. Isso vem de um amor à terra, a esses tempos?
Não. Mentira. É a necessidade de uma pessoa, que desde muito jovem começou a dar voltas, ter os pés assentes nalgum sítio. Ou seja: tive de inventar uma casa. Porque desde os 9 anos estive fora da minha família, interno, depois Barcelona… E inventei esta paixão para ter um sítio. Costumo dizer que uma árvore, para dar muitas folhas e flores, tem de estar muito enraizada. Eu sou um pouco desenraizado, daí esta minha obsessão, esta busca de um sítio no mundo: eu sou daqui, eu quero este país, etc. É mais um acto de vontade do que instintivo, umbilical.

A sua consciência social e política nasceu nesse mesmo período? Ou mais tarde?
Mais tarde. A minha família era muito de direita, tanto da parte do pai como da mãe. E eu vivi até aos 14, 15 anos com uma educação escolástica (o colégio de Figueres era de religiosos), portanto cheguei a Barcelona virgem de qualquer inquietude. O choque com o ambiente de Barcelona, universitário, e o da canção, deu-me uma informação que eu não tinha: como era a minha sociedade, o que se passava com a Catalunha e com o franquismo. Eu tinha vivido o franquismo e o problema catalão numa zona rural muito tranquila, onde falar catalão era normal, a missa era em catalão, só a escola era em castelhano. Ora eu entrei numa faculdade famosa pelo seu esquerdismo recalcitrante, comecei a lidar com uma informação para mim até aí desconhecida, comecei a reagir (não sei se bem) e entrei num grupo de cantores que cantavam em catalão…

Els Setze Jutges [os “16 juízes”, de que Llach viria a ser o 16.º elemento]…
Isso. E provocou-me um choque. Quando vejo a minha discografia (digo “vejo” porque nunca a escuto), as minhas primeiras canções eram bucólicas, pastoris, no segundo disco já há algumas dúvidas e no terceiro há L’estaca. E tudo isto se passa entre 1968 e 1970. Já me tinha convertido em estudante revolucionário e em cantor contestatário.

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De estudante universitário a cantor contestatário

Que influência teve a canção francesa (Brel, Brassens) nesse seu começo?
Eu diria que tenho dois alicerces, que me ficaram de quando escutava o transístor em pequeno: chorava com Edith Piaf e chorava com Mahalia Jackson. Mahalia era uma cantora de gospel americano, eu não a entendia, tal como não entendia francês, mas chorava. E, para mim, isso era uma garantia de que essa senhora me dizia alguma coisa. É verdade que a lista maravilhosa de cantores que França produziu nos anos 1950-60, Brel, Ferré, Ferrat, Brassens, todos, é um milagre. Foi a necessidade que a sociedade francesa teve de ocupar um espaço, depois do sofrimento da II Guerra Mundial. Creio que a intelectualidade francesa quis conquistar esse espaço, um espaço próprio. A mim, musicalmente, atraía-me muito o ritmo e sobretudo a utilização da voz negra. E depois de Mahalia Jackson, era eu ainda muito jovem, o altar mais importante do meu Olimpo particular foi ocupado por Ray Charles. Porque era a confluência de muitos estilos e a fonte da qual depois parte o soul, o rock, muitas coisas. Sempre mantive estes dois alicerces: a cultura francesa, por um lado; e a música negra por outro.

Em 1974, ano do lançamento do seu disco I Si Canto Trist, esteve em Portugal a cantar numa das primeiras sessões de Canto Livre, no Teatro São Luiz. E um mês depois compôs a canção Abril 74. Que memória guarda do Portugal desses dias?
É uma memória poliédrica. Vir aqui poucas semanas depois da libertação comoveu-me. Mas havia outras leituras: era a primeira vez que na Península Ibérica, nos últimos restos de fascismo que sobravam na Europa Ocidental, surgia uma luz que dizia “é possível”. É possível a liberdade, a democracia, acabar com as ditaduras. Esta era a interpretação que se fazia em Barcelona onde, além do mais, havia o problema catalão a par do problema do franquismo. Foi um acto simbolicamente importantíssimo. Essa canção tentava sintetizar o que se passou em Portugal e, ao mesmo tempo, o que representava para nós. E é uma canção que ainda se canta agora – eu não, que já não canto.

No disco Somnien (1979), na Cançó d’amor a la llibertat, descreveu a liberdade como “essa dama acorrentada que espera por nós.” Volta a ser um perigo dos nossos dias, esse acorrentar da liberdade?
Sim. Porque a liberdade continua acorrentada, e muito, embora de maneira mais subtil e inteligente. Diria, para usar uma linguagem antiga, que antes, para sufocar a liberdade eram precisos generais. Agora, o sistema, os poderes, encontraram maneira de a sufocar com formulações muito mais suaves mas igualmente duras quanto aos resultados. Há liberdade de expressão? Sim, evidentemente. Há informação pública? Sim. E privada? Também. Mas é claríssimo que essa liberdade está muito condicionada. Vázquez Montalbán dizia uma coisa muito inteligente: contra Franco lutávamos muito melhor. Agora é uma luta de matizes, de procura das raízes profundas do mal, e às vezes é difícil encontrá-las. Lendo a imprensa espanhola, percebe-se que a liberdade está acorrentada.

Atribui isso a quê? Aos jornalistas? A um controlo da imprensa?
Não, aos jornalistas não. Mas sim ao controlo, à manipulação da informação, há muitas coisas envolvidas – e sou a favor da liberdade de expressão e da existência de meios de comunicação privados! Há-de encontrar-se uma solução para este grave problema.

Que solução seria essa?
É evidente que a existência de meios de comunicação exclusivamente públicos não é uma solução. Isso já ficou demonstrado, é preciso um equilíbrio. Mas esse equilíbrio não passa por leis de mercado, passa por leis de liberdade social e política. As coisas transcendentes na vida política e social do ser humano não podem estar nas mãos do mercado. É preciso que haja uma regulação da vontade democrática das pessoas para solucionar esses problemas de uma maneira mais racional.

Fala de Espanha. Sente o mesmo em países como França ou Inglaterra?
Creio que estamos num ponto muito transcendente da aproximação democrática entre cidadania e poder. E é um ponto muito delicado, muito difícil. Acho que a qualidade democrática em muitos países diminuiu nos últimos anos. Agora vou dizer uma coisa louca, de cantor de protesto: acho que o triunvirato Thatcher-Reagan-João Paulo II triunfou. E não chegou ainda o momento de o Papa Francisco equilibrar o pêndulo.

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Vou dizer uma coisa louca, de cantor de protesto: acho que o triunvirato Thatcher-Reagan-João Paulo II triunfou. E não chegou ainda o momento de o Papa Francisco equilibrar o pêndulo.

Por falar em cantor de protesto: ao longo da sua carreira, quis várias vezes retirar-se, acabando por fazê-lo em definitivo em 2007. Isto quando outros cantores catalães da sua geração, por exemplo Pi de La Serra ou Maria del Mar Bonet, continuam no activo. Já que a sua voz é a sua principal arma, por que decidiu deixar de cantar?
Sempre tentei ser muito coerente comigo mesmo, muito sincero com a minha própria realidade, até quando utilizava a voz como meio de comunicação. Chegado aos 60 anos, propus-me duas coisas. A primeira foi aprender a viver de outra maneira; há 40 anos que era como uma locomotiva sempre em marcha, compondo, fazendo espectáculos, viajando, etc. Agradava-me muito esse trabalho, mas tive a ousadia de viver de outra maneira e sobretudo de aprender a fazê-lo. Eu divido a vida em três actos. E o terceiro, como num bom Shakespeare, é, não digo o mais interessante, mas o mais importante. E quis vivê-lo a partir da observação, da serenidade, do acto de aprender a ser velho, de aprender a aceitar a morte, tudo isso. Sem a rapidez e a pressão que tivera antes. Fui ao Senegal, aproveitei para fazer uma pequena fundação [Fundació Lluis Llach, que tem por objectivo apoiar “o desenvolvimento social, económico, cultural e educativo” de sociedades que possam ser “qualificadas de minoritárias”], comecei a escrever [tem três livros publicados, desde 2012], e estava muito contente até que a política me chamou…

Sente-se contente como deputado [desde 2015, eleito pela Junts per Sí]?
Não estou tão contente, mas estou muito apaixonado. Porque ajudar um país a buscar os seus limites de liberdade é, para qualquer cidadão que acredite neles, uma paixão. Mas em qualidade de vida estou muito longe do que pretendia, ao retirar-me. Volto a ser uma personalidade pública. Veremos os resultados.

Numa entrevista televisiva, em 2014, disse que no início não era independentista mas sim autodeterminacionista e que depois mudou. Porquê?
Quando chega a Constituição de 1978 imaginei, pensei, acreditei que havia um projecto de futuro para o Estado espanhol onde pudéssemos conviver, confluir, países distintos, catalães, galegos, bascos, castelhanos, numa espécie de antevisão do que teria que ser a Europa, com base na autodeterminação, na vontade, no respeito. Tudo isso foi, pouco a pouco, tropeçando com o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), sobretudo com um personagem que, espantosamente, é admirado em todos os lugares, Felipe González. Ele rompe, quanto a mim, com esse projecto de futuro. Não se pode negar que fez coisas socialmente muito importantes na saúde e na educação, mas no processo de mudança ele não destruiu os alicerces da ditadura, que continuam intactos até hoje, e não tocou, porque não se atreveu, no sistema judicial. E se é impossível transformar o Estado espanhol, então escapemo-nos. Por isso me tornei um independentista feroz. E este mesmo raciocínio, fazem-no desde 2010 na Catalunha milhões de pessoas.

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2015: Independentistas no Dia Nacional da Catalunha. Lluis Llach é desde esse ano deputado pelo Junts per Sí Albert Gea/reuters

O que são, então, os independentistas catalães de hoje?
Não são gente que fala de uma identidade nacional perdida há séculos. Haverá uns 12% de independentismo identitário, fundado em recordações da história. Mas 50% é gente que diz apenas: acabou! Ou seja: para nós, neste momento, e em Espanha não se dá conta disto, independência é sinónimo de democracia. E acaba aqui. Não é um problema identitário, é um problema democrático.

Que solução tem para isso, neste momento, um independentista feroz?
Há vários caminhos. O que se decidiu ultimamente é o referendo. Porquê? Porque um referendo dá-nos um mandato democrático para apresentar a todos os países europeus de valores democráticos. O que poderíamos fazer com um parlamento de maioria absoluta independentista não dá esta garantia de vontade popular. Então, em meados de Setembro, vamos exercer essa vontade popular através de um referendo e o Estado que faça o que quiser. Por nós, faremos isso.

Pensa que o resultado será maioritariamente favorável à independência?
Penso que sim. E, para ajudar a minha teoria, creio que o Estado espanhol também.

E se não for? Se a votação resultar num “não”?
Isso está assumido por toda a gente independentista: no dia seguinte estaremos a trabalhar, não em casa. Continuaremos a defender a independência como solução, mas aceitando os resultados. O que há de novo no movimento independentista catalão é que não é uma jogada política. Todos os partidos se sentem violentados, os independentistas também. E se analisarmos o panorama político catalão, por exemplo a Convergència ou o Partido Socialista, ver-se-á que tiveram de se adaptar a um tsunami que nasceu em 2010, seguramente, ou em 2012, quando um milhão de pessoas saiu à rua. A pergunta não é o que queremos ser, mas quantos somos. Sobretudo desde que soubemos que podíamos utilizar instrumentos democráticos para reivindicar as nossas lutas, o que não havia nunca acontecido. E isto jamais alguém imaginou. Estamos pressionados por uma vontade que, em menos de seis anos, passou de uns 12% a 50%. E isto não é mérito nem da Catalunha nem dos catalães, é demérito do Estado espanhol.

L’Estaca, a canção que escreveu há quase 50 anos e que se transformou num hino, fala de uma estaca a que nos atam. A que estaca estaremos atados hoje?
Quando escrevi L’Estaca não pensava tanto em questões de libertação nacional mas sim em questões sociais. E, mais do que particularizar num caso, era para mim um problema de sistema. O mundo, tal como está organizado, é uma enorme estaca. Cada um em sua casa a tentar resolver as suas estacas, e o mundo já nem é uma estaca, é um “estacazo” [golpe forte dado com uma estaca]. E estamos a viver momentos terríveis. Imaginar, há 20 ou 30 anos, que um personagem como Trump chegaria a Presidente dos EUA! Ou que na Holanda houvesse o perigo de a extrema-direita fascista ganhar! A Europa em que vivemos é uma vergonha. Se a Europa, à parte do seu poderio económico, não é um espaço de convivência social e de aceitação dos valores democráticos que não nos faça aceitar os quase assassinatos colectivos que fazemos no Mediterrâneo ou na Grécia, então merda para a Europa! Não é a Europa que sonharam nem os Monnet nem os Schuman, apesar de serem senhores bastante à direita. Não, isto não vai por aqui.

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Independência é sinónimo de democracia. Não é um problema identitário, é um problema democrático.

Com esse pessimismo, vê algum futuro para a União Europeia?
Se o 'lepenismo' não ganhar em França, se nos salvarmos do fascismo na Holanda ou na Áustria, eu creio que, apesar da mediocridade qualitativa dos nossos actuais políticos europeus, eles vão perceber que este caminho os leva, a eles, ao suicídio. E é possível que se dêem conta de que mover o pêndulo até outro lado é a única salvação.

Numa das suas canções, Somnien, escreveu: “Não nos envergonha sermos escravos da esperança.” São palavras actuais? É possível ter esperança?
Claro, senão daríamos um tiro na cabeça. Esse é o nosso grande património como seres e colectivos humanos: apesar dos desastres que nos rodeiam, levantamo-nos todos os dias para seguir em frente. Sim, há motivos para ter esperança. Entre outras coisas porque, se deixarmos de olhar o mundo numa visão micro-histórica e abrirmos o ângulo, apesar de tudo, e apesar de os grandes problemas humanos permanecerem, o avanço da Humanidade é, em muitos aspectos, fantástico.

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