O futebolista que se fartou da bola e foi feliz no ringue

Curtis Woodhouse chegou a ser internacional sub-21 pela Inglaterra, mas passou de jogador a pugilista aos 26 anos e ainda foi a tempo de ser campeão britânico.

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Oito anos depois do primeiro combate, Woodhouse foi campeão britânico de boxe DR
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Woodhouse e David Beckham durante um dos três jogos do pugilista-futebolista na Premier League Darren Staples/Reuters

Anthony Joshua ou Wladimir Klitschko, um deles sairá vencedor neste sábado de um combate que irá ter como prémio vários títulos de campeão de pesados atribuídos pelas várias organizações que gerem o boxe. Em Wembley, perante 80 mil pessoas e transmitido em pay-per-view para todo o mundo, o campeão inglês enfrenta o desafiante ucraniano 13 anos mais velho e desejoso de voltar ao topo, ele que foi invencível durante 11 aos até perder em 2015 com Tyson Fury. Como futebolista, Curtis Woodhouse chegou a jogar para multidões de grandeza semelhante na Premier League, mas não foi uma carreira em crescendo e, aos 26 anos, já andava a navegar pelas divisões secundárias. Por isso, mudou-se para o boxe. Não ganhou dinheiro com isso, mas foi mais feliz que nunca.

Curtis Woodhouse começou a dar murros muito antes de entrar no ringue. A sua família era a única família negra no bairro onde cresceu, em Driffeld, a norte de Hull, e, por isso, chamavam-lhe nomes na rua. Curtis não se ficava e respondia com os punhos, mas, com uma bola à frente, também era habilidoso com os pés e, aos 16 anos, foi para a formação do Sheffield United, a ganhar 42 libras por semana. Aos 17 anos, já jogava na primeira equipa e, aos 19, foi o capitão mais novo da história do Sheffield. Woodhouse era um médio-esquerdo com técnica e, nesta altura, representou por quatro vezes a selecção sub-21 da Inglaterra, ao lado de jogadores como Steven Gerrard, Frank Lampard ou Jamie Carragher.

Numa equipa onde chegou a ter a companhia do português Bruno Ribeiro, Woodhouse nem sempre teve os favores do treinador e acaba por ser vendido ao Birmingham City em 2001 por um milhão de libras. No Birmingham, o médio acabaria por chegar à terra prometida chamada Premier League em 2002, onde fez apenas três jogos, um deles em Old Trafford frente ao Manchester United – e admitiu que jogou ressacado de seis noitadas consecutivas. Mas, como o próprio admite, era tudo menos um profissional modelo. “Comecei a gostar demasiado da vida nocturna, de tal forma que o futebol se tornou num impedimento à minha vida social. Tinha dinheiro e tempo livre. Devia ter-me agarrado ao futebol, mas prefiria passar a vida em bares e discotecas”, reconheceu.

Chegou a desaparecer durante mês e meio sem dar satisfações a ninguém e foi fazer uma viagem pela Europa com o irmão. Nunca mais jogou no Birmingham e despediram-no, acabando essa época no Rotterham, da Championship. No ano seguinte, desceu para o Peterborough United, da League One (terceira divisão), onde jogava o suficiente para justificar o ordenado e uma eventual transferência. Dois anos depois, o melhor que conseguiu foi ir para o Hull City, clube da sua cidade. O pai tinha um “pub” perto do estádio, onde Curtis passava os dias. Não foram os tempos mais felizes. “A verdade é que preferia estar em qualquer outro sítio menos ali”, contou na autobiografia “Box to box” (Simon & Schuster, 2016).

Longe de poder jogar no seu clube de infância, o Liverpool, e de poder imitar o seu ídolo de infância, John Barnes, Woodhouse avançou para o boxe sem nunca ter sido sequer um pugilista amador. Enquanto jogava futebol, Woodhouse treinava num ginásio sde bosxe em o conhecimento dos treinadores e contava que se tinha envolvido em mais de 100 escaramuças na rua. “Se era para acabar preso, mais valia ganhar dinheiro com isto”, dizia. Foi nesta altura que o pai morreu e isso acabou por reforçar a sua determinação. Toda a gente lhe dizia que era uma má ideia, mas Woodhouse manteve-se no caminho do boxe e, em Setembro de 2006, estreou-se com uma vitória no seu primeiro combate profissional.

“As minhas pernas pareciam geleia quando estava a ir para o ringue. Não combati muito bem, mas ganhei por pontos e ganhei 2500 libras. Paguei 15 por cento ao meu agente, 10 por cento ao treinador e fiquei com quase nada, mas estava feliz porque era um pugilista profissional. Ninguém disse que eu era o próximo Floyd Mayweather, mas já era qualquer coisa”, dizia. Ganhou os seus dez primeiros combates e foi subindo na hierarquia da categoria de super-ligeiros, sem ganhar muito dinheiro, ao mesmo tempo que ia jogando em clubes amadores.

Em Fevereiro de 2014, oito anos depois do primeiro combate, chegou finalmente ao título de campeão britânico de super-ligeiros, triunfando por decisão sobre Darren Hamilton. Quatro meses depois, perdeu na defesa do cinto e retirou-se do boxe aos 34 anos com a sensação de dever cumprido (e um registo de 22 vitórias em 29 combates), ensaiando agora uma segunda vida no futebol, como treinador. “O futebol era a minha especialidade e foi o que eu fiz toda a minha vida”, contava na autobiografia. “O boxe era o oposto. Nunca fui um talento natural. Sabia lutar, mas a nobre arte sempre me escapou. O boxe foi a minha redenção e mostrou-me o que me faltou como futebolista: disciplina e dedicação. E fui bem mais longe do que o meu talento permitia.”

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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