Cem dias de contradição

Muito popular na sua base, historicamente impopular entre democratas e até republicanos. Trump teve arranque errático e está a tentar compensar, pela frente externa, as inconsistências das batalhas internas que se apressou a criar

"No novo ecossistema mediático, tudo é verdade e nada é verdade"
Barack Obama, citado por David Remnick, na New Yorker

“Para os votantes de Trump, uma realidade alternativa – para mais construída com inimigos imaginários e promessas douradas – é melhor do que nada ou do que mais do mesmo”
Andrés Rondon, Politico Magazine

"Quando os que comandam perdem a vergonha os que obedecem perdem o respeito" 
Georg Lichtenberg, filósofo alemão do século XVIII 

Não foi um caso de primeiro estranhar para depois se entranhar, mas já se nota uma certa “normalização” ao ver Trump na Casa Branca – e isso é, no mínimo, inquietante. A ideia de impeachment, que os opositores de Donald foram alimentando desde a eleição choque de 8 de novembro passado, vai-se esfumando à medida que o tempo passa. Não por mérito das ações de Trump, que tem sido um líder errático e contraditório, mas pela constatação de que, no complexo sistema americano, o Presidente é o ‘pivot’ com mais poder, mesmo que obrigado a respeitar o escrutínio dos restantes.

Por mais perturbadora que tenha sido a presidência de Trump nos primeiros 100 dias – e foi-o em momentos como a travel ban ou nas situações em que o Presidente dos EUA insistiu em mentir descaradamente – começa a ficar claro que algo de muito significativo mudou no ambiente político na América.

Os últimos 100 dias mostraram que passou a ser “normal” ver o Presidente dos EUA faltar à verdade em público (média de seis mentiras por dia, contabiliza o “medidor” diário do Washington Post), insultar os media e tecer considerandos muito pouco elevados sobre juízes federais.

Tudo isto de um modo pouco sustentado, ao sabor do interesse do momento e sem grande preocupação com conceitos que supúnhamos básicos como a “verdade”, a “cooperação” ou até a “boa educação”.

Em apenas 100 dias, o valor e a força da palavra do Presidente dos EUA  perderam peso e credibilidade. E isso tornou-se “habitual”. Talvez seja essa a consequência mais grave do inesperado triunfo eleitoral de novembro passado. Donald Trump andou um ano e meio a dizer que as estatísticas oficiais sobre o emprego eram falsas e não tinham qualquer credibilidade -- para desdenhar o desempenho da Administração Obama. Agora na Casa Branca, e depois da criação de 235 mil novos postos de trabalho em fevereiro (com apenas 4.7% de desemprego), o mesmo Trump veio dizer que «são números fantásticos», apropriando-se dos louros políticos de um índice que, apenas 50 dias antes, dizia ser "totalmente irreal". 

Como candidato, Trump dizia que "o desemprego real nos Estados Unidos está nos 30 ou 35%". Como presidente, avaliza os dados da mesma instituição que os fornecia durante a presidência Obama (o Bureau of Labor Statistics do US Departmant of Labor). 

Como reagiu na altura Sean Spicer, porta-voz da Casa Branca, a esta guinada de 180 graus do Presidente num tema crucial? "Falei com o presidente antes disto e ele disse-me para o citar, muito claramente: ‘Os números podem ter sido falsificados no passado, mas agora são muito reais'". 

Este tipo de estratégia comunicacional foi usada nos primeiros 100 dias pelo Presidente noutros temas como a suposta “fraude eleitoral” que teria dado a maioria do voto popular a Hillary ou até em relação a algo tão visível como a diferença entre o número de pessoas presentes na primeira tomada de posse de Obama e durante a inauguração de Trump, a 20 de janeiro passado.

Aconteceu também na frente externa. 

Trump usou a estratégia de distração ao escolher a mesma data para 'punir' Assad na Síria enquanto recebia o líder chinês, Xi Jinping, em Mar-a-Lago. E repetiu-a quando, para prevenir possível fracasso da visita de Tillerson a Moscovo, tirou o foco na tensão EUA/Rússia e retomou, artificialmente, a ameaça norte-coreana para primeiro plano.

“Ele que se comporte”, avisou Kim Jong-Un, recebendo de Pyongyang como resposta: “Não se metam connosco”. Seria cómico, se não pudesse ser trágico.

O primeiro Presidente americano sem qualquer experiência política ou credenciais militares agravou, nos primeiros 100 dias na Casa Branca, o seu caráter divisivo e polarizador: mantém apoio entusiástico de 95% da sua base (composta por eleitores que tendem a acreditar muito mais no que Trump diz do que nos “factos” propriamente ditos), mas bateu recordes de impopularidade junto da base democrata e até dos republicanos “tradicionais”. 

Donald Trump foi o primeiro Presidente dos EUA nos últimos 35 anos a falar num evento nacional da NRA (a poderosa National Rifle Association, o 'lobby' das armas). Nem George W. Bush fez isso. Não restam, por isso, grandes dúvidas sobre que tipo de segmentos mantêm a base de apoio ao 45.º Presidente dos EUA.

O resultado é preocupante para o Presidente e para a saúde do sistema político americano: Trump bateu, a 27 de março passado, no fundo de 36% de aprovação (Gallup), mínimo nunca antes atingido por um Presidente em início de funções, desde que há escrutínio diário do desempenho dos presidentes dos EUA.

Aqui chegados, há, todavia, uma conclusão a tirar: até um líder apressado e imprevisível como Trump se viu forçado a perceber que 100 dias é um período demasiado curto para se fazerem balanços definitivos, sobretudo num sistema tão complexo como é o norte-americano.

Atinge o Dia 100 um pouco acima, entre os 40 e os 43% de aprovação, graças a uma mudança de agulha nas suas prioridades políticas, operada no último mês.

Não ter estratégia pode ser estratégico

Donald Trump transforma a sua clara impreparação temática e ideológica numa vantagem estratégica: não teve qualquer problema em passar de 'isolacionista' a 'intervencionista' em poucas semanas, desde que isso lhe convenha no momento. 

Depois de dois meses de total incapacidade para avançar com soluções em Washington para as suas propostas radicais para a imigração (travel ban) e para a saúde (tentativa falhada de acabar com o ObamaCare), o Presidente dos EUA virou-se para a frente externa para camuflar fracassos internos. 

Trump, que escolheu para o seu discurso de posse a ideia de "America First", lembrando que é "presidente da América e não do mundo", percebeu que a única forma de virar a agulha da impopularidade que o persegue seria criar cenários de drama que se sobrepusessem à realidade americana. 

A NATO, que era "obsoleta" durante a campanha, agora até merece elogios presidenciais. Assad, cuja firmeza chegou a ser lisonjeada por Donald-candidato, é agora um "carniceiro que faz coisas horrorosas" para o Trump-presidente. 

Ciente de que a carta da "força excecional americana" é muito poderosa e só pode ser jogada por quem estiver na Casa Branca, quis mostrar que é diferente de Obama e que não está refém dos interesses de Putin. Ao atacar o regime de Assad, atingiu de uma assentada esses dois objetivos -- mesmo que fazendo apenas uma ação e isso não implique uma "mudança de fundo" no comportamento americano em relação à guerra na Síria. 

Dias depois, com o lançamento surpresa da "bomba de todas as mães", reforçou a tecla de ser "mais resoluto que Obama na hora de usar a força" e quis, sobretudo, tirar as dúvidas sobre a prioridade que tem de combater o Daesh (neste caso, no Afeganistão) e não o regime de Assad (que os EUA não apoiam e agora apenas sublinham que "deve sair do poder da Síria", colocando o ónus dessa saída sobre os russos). 

Com estas duas jogadas bélicas, Trump marcou pontos no "core" republicano e em alguns setores independentes e democratas. Com isso, subiu um pouco na sua base fundamental de apoio, mesmo tendo perdido parte do entusiasmo da Alt Right, que advoga um isolacionismo mais radical. 

O que sai disto tudo? Uma grande confusão, adicionada a uma noção de escalada bélica que é obviamente perigosa. Mas daí até se falar em conflito real entre potências militares como EUA, China, Rússia e Coreia do Norte vai uma grande distância. 

Escalada artificial

O que a crise das últimas semanas tem mostrado é que o único verdadeiro interessado nesta escalada é mesmo Donald Trump -- e por razões de política interna.  

E sai, também, a ideia de que Jared Kushner, genro de Trump (casado com Ivanka) é cada vez mais o principal conselheiro do Presidente e está a ganhar a guerra estratégica, ideológica e até pessoal que tem travado, nas últimas semanas, com Steve Bannon (ideólogo de Trump na parte final da campanha e nas primeiras semanas do mandato presidencial). 

Afastado do Conselho de Segurança Nacional, derrotado nas últimas grandes opções do Presidente, Bannon pode estar a pagar o preço do excessivo protagonismo assumido depois de novembro (chegou a ser capa da Time com o título "o grande manipulador"). 

Trump estará a deixar claro que é menos extremista do que Bannon (talvez esteja a perceber finalmente que a visão de Steve Bannon e da extrema-direita "Breitbart" é um fenómeno passageiro e claramente minoritário na sociedade americana) e que poderá, em próximas fases deste mandato, seguir cada vez mais a via pragmática de Kushner, Mattis, Tillerson e do seu novo conselheiro de segurança nacional (H.R. McMaster). 

Há um momento chave para se perceber esta nova fase da Presidência Trump; a queda do general Flynn ao fim de apenas 23 dias. 

Perspicaz, Donald Trump percebeu o risco real que corria se se mantivesse demasiado próximo da "Russia connection". 

Todos os acontecimentos desde esse episódio reforçam esta ideia: afastamento de Devin Nunes das investigações, depois de ter ido à Casa Branca dar informações sobre o tema ao Presidente, à revelia do Congresso e apesar de se manter como líder do Comité dos Serviços Secretos; afastamento de Steve Bannon e de Katthy McFarland (os dois elementos que eram mais próximos do general Flynn) do Conselho de Segurança Nacional; escolha de Fionna Hill, moderada e credível, para 'top adviser' do Presidente para assuntos russos e europeus; escolha de bombardeamento americano ordenado por Trump a base militar em Homs, bem conhecida dos russos; lançamento da "super bomba" no Afeganistão contra o ISIS; visita de Rex Tillerson a Moscovo marcada por gelo nas relações com Moscovo e não como um possível "turning point" para clara aproximação, como se esperava no ambiente pós-eleição de Trump. 

E ainda um último e talvez mais relevante sinal: o súbito encantamento de Trump pelo presidente chinês, Xi Jinping, sobretudo depois de o ter recebido em Mar-a-Lago. 

Donald Trump, eleito com promessas de namoro com a Rússia de Putin e de agressividade comercial com Pequim, está agora a distanciar-se de Moscovo e elogiar a China. A única certeza que podemos ter com o 45.º Presidente dos EUA é a de uma liderança incerta, imprevisível, por tudo isso, perigosa e inquietante. 

Tudo o que não precisávamos, portanto.

Os democratas à procura de uma bússola

Enquanto isso, os democratas vão tentando recompor-se do grande choque de novembro.

Hillary Clinton, em presenças públicas pontuais, atirou as culpas da derrota a James Comey e à carta que o diretor do FBI escreveu ao Congresso, reavivando o tema dos emails a 11 dias da eleição.

Barack Obama, que no dia em que passou a presidência a Trump fez questão de dizer que acha o seu sucessor “apenas uma vírgula”, fez recentemente a sua primeira aparição pública. Na Universidade de Chicago, falou a estudantes e jovens líderes sobre mobilização e envolvimento cívico e apontou duas prioridades para os democratas nos próximos tempos: insistir numa redefinição dos distritos eleitorais, de modo a combater o “gerrymandering” que supostamente beneficia os interesses eleitorais dos republicanos em muitos estados; estudar formas de financiamento que dignifique a política e os candidatos.

O problema é que 2020 já não está assim tão longe e não se vê candidato forte, do lado democrata, que impeça um segundo mandato de Trump. Pode parecer contraditório, atendendo à impopularidade do Presidente, mas revela o momento particularmente difícil que atravessa o Partido Democrata. 

O “movimento Sanders” foi sinal de alarme claro mas não gerou, ainda, uma nova figura com força nacional. Os nomes mais fortes da “era Obama” parecem, hoje, figuras do passado (Hillary, Biden, Kerry), com exceção de Michelle Obama, que não quer seguir carreira política.

Mesmo impopular, contraditório e errático, Donald Trump pode vir a ter condições de, depois de um mandato a todos os títulos bizarro, vir a sonhar com a reeleição. 

A política americana é mesmo uma caixinha de surpresas.

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