O outro SAAL

Em Madrid, entre 1979 e 1989, houve também uma espécie de processo SAAL. Olhá-lo pode ajudar a perceber a actualidade. Para que a arquitectura não seja a construção no território do que foi concebido no estirador, mas antes o contrário

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Cortesia Alexandre Alves Costa

As três longas décadas de ditadura tinham sumido o país num profundo período de subdesenvolvimento económico e desigualdade social. Muitos dos que viviam no centro da cidade faziam-no à margem do sistema e a única coisa que o Estado tinha para lhes oferecer era o alojamento na periferia, onde a repressão era muita e as oportunidades poucas. Por isso, a década de 70, com a chegada da democracia, trouxe consigo o profundo desejo pela justiça espacial, uma luta na qual embarcaram moradores e arquitectos. Uma bela historia de acção colectiva que visou o direito à cidade: a melhoria das condições de alojamento no local onde já se habitava, lugares antigamente periféricos que entretanto se tinham tornado centrais e, portanto, cobiçados.

Não, não estou a referir-me ao célebre processo SAAL, que vigorou em Portugal entre 1974 e 1976, dando origem à consolidação da arquitectura moderna em Portugal e à difusão na Europa das realizações da legendária Escola do Porto. Estou a falar do processo de “Remodelación de Barrios de Madrid” que, desenvolvido entre 1979 e 1989, foi capaz de criar 38 mil habitações em 28 novos bairros, realojando aproximadamente a 150 mil pessoas que viviam em condições precárias. Vale a pena debruçarmo-nos sobre o caso espanhol, porque a ausência de certos elementos simbólicos que protagonizam o caso português permite introduzir novos elementos de análise sobre o SAAL, que nos permitam pensar como recuperar o seu espírito, numa altura em que a questão da habitação está no centro do debate público.

Em primeiro lugar, no caso madrileno verifica-se a ausência do antagonismo classes populares/grande capital, pois as primeiras souberam aproveitar a crise económica para criar uma aliança com as empresas construtoras, o que sem dúvida contribuiu para a redução dos custos e a duração do processo. Em segundo lugar, a ausência de uma arquitectura “de excelência” facilita colocar o foco não no resultado formal mas antes no processo produtivo, o que permite analisar melhor as relações entre os actores que estiveram envolvidos nas operações. O “poder popular” tradicionalmente referido em Portugal é analisado em Espanha através do conceito de “conjunto de acção”, que se refere à forma como se produziu a participação nos vários processos (cidadanistas, gestores ou populistas, em função das diferentes articulações entre a administração e os sectores formais/informais).

Colocado à frente do português, o caso espanhol actua como um espelho que devolve uma imagem diferente daquela que costumamos atribuir-lhe. O legado do SAAL não seria tanto a sua arquitectura mas a possibilidade de a tornar acessível a mais pessoas. A possibilidade de avançar para uma cidade mais democrática não dependeria tanto de uma nova revolução mas antes da nossa capacidade de pôr os interessados na habitação a trabalhar com base noutras regras. Esta circunstância não passaria, de todo, pela recuperação do clássico conflito entre os interesses do capital e as necessidades da população. Exigiria pensar sobre uma oposição que é mais realista e muito mais radical: a possibilidade de produzir uma arquitectura que não é o resultado de construir no território o que foi concebido no estirador, mas sim traduzir para linguagem técnica a realidade dos territórios (e dos agentes que o habitam).

Emerge assim uma possibilidade que, no fundo, sempre esteve aí. Para além daquele que foi exibido em Serralves no 40.º seu aniversário, existe um outro SAAL que é, em simultâneo, aquele que tinha idealizado o seu mentor — o arquitecto Nuno Portas — e o único que hoje poderia existir. Trata-se de um SAAL sobre o qual não se fala, que constitui uma lição da qual ainda podemos retirar muitas aprendizagens, mas que exige mudar a maneira em que nos aproximamos a ele. É comum que, nos círculos académicos, os investigadores se interroguem acerca da maneira como o SAAL contribuiu para o desenvolvimento da arquitetura. No entanto, pareceria mais lógico perguntar-se de que maneira a arquitetura pode contribuir, hoje, para uns objectivos de justiça espacial que são tão válidos agora como quando foram formulados no 25 de Abril.

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