A fé de João Canijo num cinema do real

Um percurso por três décadas de trabalho do cineasta João Canijo: família, violência, Portugal. No momento em que chega às salas o périplo de 11 actrizes que caminharam de Vinhais, Trás-os-Montes, até ao Santuário de Fátima.

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Num 13 de Maio real, 11 actrizes acabavam o seu duplo périplo, o de encenar e produzir um filme, e o de fazerem uma “peregrinação” imposta: Fátima Joana Linda

No final da década de 90, João Canijo regressava com fulgor ao cinema português. Sapatos Pretos (1998), protagonizado por uma fatal Ana Bustorff no deserto metálico de Sines, colocava-o numa espécie de terra de ninguém: a sua família cinematográfica parecia ser qualquer coisa outra, uma hibridização de vários estilos do cinema do mundo, ao mesmo tempo que iniciava uma profunda e radical análise ao mundo português. Quase duas décadas depois, o realizador atravessa o mesmo processo de transformação que parece ter seguido desde então. Fátima, a sua última longa-metragem, filme-projecto que procurava concretizar há anos, é um filme num limbo, pretendendo constantemente a instabilidade. É, sugerimos, essa a grande certeza do cinema de João Canijo, em 2017: aprofundar um método — a reconstrução do real através do contágio com o meio envolvente — e, sobretudo, colocar-se em causa.

Fátima não é um filme qualquer: é um projecto que se debruça sobre uma tradição muito portuguesa, agora centenária, de cumprir promessas a Nossa Senhora de Fátima, calcorreando centenas de quilómetros desde um determinado lugar até ao Santuário na Cova da Iria, centro de Portugal. Neste filme, o fenómeno histórico e mesmo religioso de Fátima é o que menos interessa ao realizador. Ao invés, Canijo prefere deslocar a “acção” para um contexto de caminhada, colocando onze mulheres a fazer o trajecto mais longo, dentro do território português, de uma peregrinação, partindo de Vinhais, em Trás-os-Montes. O filme decorre nesse percurso, terminando no santuário, num 13 de Maio real, em que as actrizes acabam o seu duplo périplo: o de encenar e produzir um filme, mas também o de fazerem uma “peregrinação” imposta.

Como já acontecera em projectos anteriores, as actrizes fizeram um “estágio” em Vinhais, durante alguns meses, tempo em que viveram da mesma forma que as suas personagens. Em vários casos, houve inspirações reais em mulheres que habitavam nas aldeias circundantes. Fizeram também várias peregrinações-ensaio. Daí decorreu a construção das personagens através de “contágio”, que foram evoluindo à medida que as actrizes-como-personagens calcorreavam as estradas portuguesas a caminho do Santuário. Fátima é, assim, um filme ficcional feito a partir de diversos elementos do “real”.

Alguns dirão que prolonga as obsessões de João Canijo. Concordamos, em parte, com isso. Mas o processo de revisão que o cineasta enceta neste filme parece ser irreversível. E esse processo centra-se, definitivamente, no olhar complexo e ambíguo sobre as personagens. Para o realizador, o cinema é uma forma de representação da realidade, e os seus filmes mostram-nos a ambiguidade e a complexidade do real. Se é verdade que o projecto da sua filmografia muitas vezes se apresentou, discursivamente, como o de mapear uma suposta portugalidade, a sua importância é mais vasta e mais complexa. Daí que, ao assumir ferramentas híbridas da não-ficção e da ficção, em Fátima, mas também noutros filmes, Canijo consiga radicalizar o seu cinema, num sentido puramente de abertura ao mundo. E esse é um passo enorme.

Neste último filme, condensam-se e expandem-se diferentes ideias recorrentes na sua filmografia, ideias que tem percorrido nestas duas décadas de trabalho. Por isso, em Fátima, conjugam-se duas estratégias complementares: por um lado, assume-se um certo discurso cultural; e, por outro, recorre-se a uma constante experimentação estética. Se a primeira se manteve constante, a segunda sofreu transformações profundas.

Famílias em implosão

Há um dado essencial no caminho desbravado pelo cineasta: a sua obsessão por retratar comunidades específicas. Colocando-se em lugares diversos e distantes — a vila industrial de Sines, um bar de alterne perdido no interior de Portugal, uma bidonville parisiense, uma aldeia de Trás-os-Montes, e um bairro social na periferia de Lisboa —, o seu propósito era o de evidenciar os sinais de uma suposta identidade cultural portuguesa. Vêem-se, nesses filmes, diversas características que acentuam esse retrato: famílias em implosão, onde a violência irrompe inesperadamente, colocando o papel da mulher em questão. Estas famílias vivem entre uma ideia de ilusão — aquela proporcionada pelas aparências do dia-a-dia, dos acontecimentos sociais ou da televisão sempre ligada — e uma realidade subterrânea, interior, muito obscura, repleta de violências sistemáticas. São famílias patriarcais, machistas, impiedosas.

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Uma mulher que obriga o seu amante a assassinar o marido: Sapatos Pretos, (1998)
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Um pai que oferece a sua filha mais nova a uma mafia russa, para desespero da mulher e da filha mais velha: Noite Escura, (2004)
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Uma filha que espera a chegada do irmão para vingar a morte do pai às mãos do padrasto e da sua mãe: Mal Nascida, 2007
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Uma filha que tem um romance com o pai, sem o saber, e uma tia que se sacrifica pelo sobrinho: Sangue do Meu Sangue, 2011

Neste sentido, o propósito de Canijo nestes cinco filmes de ficção de que agora falamos — o citado Sapatos Pretos, mas também Ganhar a Vida (2001), Noite Escura (2004), Mal Nascida (2007) e Sangue do Meu Sangue (2011) — é compreender as complexas transformações da sociedade portuguesa, evidenciado as marcas de um passado traumático e o da rápida evolução das mentalidades e das condições económicas. Por isso, os filmes estruturam-se sempre em famílias em implosão: uma mulher que obriga o seu amante a assassinar o marido (Sapatos Pretos); uma mãe que se descontrola depois do seu filho ser alvejado durante a noite (Ganhar a Vida); um pai que oferece a sua filha mais nova a uma mafia russa, para desespero da mulher e da filha mais velha (Noite Escura); uma filha que espera a chegada do irmão para vingar a morte do pai às mãos do padrasto e da sua mãe (Mal Nascida); uma filha que tem um romance com o seu pai, sem o saber, e uma tia que se sacrifica pela dívida do sobrinho (Sangue do Meu Sangue). Estruturados, como vemos, em narrativas-catástrofe, estes filmes complexificam a ideia de família e de sociedade, procurando ir além da superfície desta story-line limitadora.

Por isso, estes seus filmes são marcadamente contraditórios, colocando-se no centro desse furacão das identidades em processo de mudança. Daí que esta seja uma filmografia muito empenhada em discutir as representações culturais portuguesas, no que muito contribuiu a utilização do melodrama enquanto código narrativo. Tal como o melodrama, estes cinco filmes — três deles partiram de tragédias gregas, modelo narrativo percursor do género — organizam-se em estruturas catárticas, em que a mulher se constrange face ao poder masculino, irrompendo descontroladamente em finais apoteóticos. A família e a casa de família aparecem como elementos narrativos e da mise-en-scène que suportam este discurso melodramático. Isto é, a família acentua as contradições sociais da sociedade, numa metonímia do funcionamento pervertido de uma comunidade. Tal como o melodrama, estes são filmes claustrofóbicos.

Há, neste contexto, um projecto que acentua este discurso de forma cristalina: Fantasia Lusitana, o documentário que Canijo pensou em 2010, utilizando material de arquivo do Jornal Português (actualidades produzidas pelo regime ditatorial) e outras fontes alternativas. Aí, vemos como a construção discursiva salazarista impôs um modo de vida: aquele do viver habitualmente, sem problemas, numa felicidade pobre e honrada. Mas esse discurso escondia, obviamente, todas as subversões sob a capa de uma portugalidade bonita. Nesse filme, esse paradoxo era ainda mais evidente pela forma como a sociedade portuguesa contradizia o horror da II Guerra Mundial. É dessa dualidade e da sua radical denúncia que se faz o discurso cultural de João Canijo.

Esteticamente, este discurso foi concretizado de forma diversa. Aí, pressentimos uma metamorfose lenta do seu modo de pensar o cinema. Se excluirmos os dois primeiros filmes, ainda exercícios sobre um cinema por vir (Três Menos Eu e Filha da Mãe), em Sapatos Pretos Canijo assume uma estética degradada, deixando-se invadir pelo vídeo e pela urgência da câmara à mão (a sua experiência televisiva para isso muito contribuiria, a par da emergência do cinema Dogma escandinavo). Esse lado sujo da imagem, de certa forma artificial, conjuga-se com uma imagem berrante da estética kitsch de um certo Portugal. A história de um crime passional ajudava ao retrato.

Essa visão manteve-se em Ganhar a Vida e Noite Escura, mas aqui com uma inflexão importante: a da câmara em constante vertigem pelas personagens e pelos seus olhares. Noite Escura tornava claro que o centro narrativo dos filmes de Canijo passaria a ser a família, enquanto célula-base de um pensamento entranhado nos corpos e nas almas. Por isso, havia uma profunda comunhão de imagem e som com os comportamentos erráticos das personagens. As cores, os espaços, os planos fechados e, é claro, as vozes sobrepostas, pintavam um retrato de contradições e de imersão numa realidade soturna. A casa de alterne de Noite Escura era, ao mesmo tempo, a casa da família e lugar de relacionamentos proibidos.

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Joana Linda

Era um lugar opressor, repleto de ilusões (entre os homens e as “suas” alternadeiras). A emergência, ainda que ténue, do trabalho da actriz Anabela Moreira (revelando uma “mulher da noite” em modo de representação sublimada, por acontecer em pano de fundo), em conjunto com as alternadeiras (muitas delas não-actrizes), prenunciava uma vontade de trabalhar de outra forma. Já nesse filme o processo fora “feminino”, com um naipe impressionante de actrizes em transformação e em que pontuam Beatriz Batarda e Rita Blanco. O método subtil de confluência da história (a família) com o contexto (as alternadeiras) é, em Noite Escura, um método sem retorno para João Canijo.

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Fátima, filme-projecto que Canijo procurava concretizar há anos, pretende a instabilidade: aprofundar um método — a reconstrução do real através do contágio com o meio envolvente — e, sobretudo, colocar-se em causa Rui GaudÊncio

É por isso que Mal Nascida é um filme charneira neste processo em curso. Apesar da evidente construção melodramática, um projecto cinematográfico cimentava-se: um olhar para uma realidade concreta, fazendo uso do contágio dos actores com a comunidade envolvente. Mal Nascida colocava-se numa aldeia de Trás-os-Montes, destacando o café central e a família que comandava o negócio. Mundo fechado, tacanho e possuído pelos rancores de acontecimentos passados, este lugar emanava uma violência irracional. Despontava em todo o seu fulgor, nesse momento, a dimensão performática de Anabela Moreira e a sua metamorfose física e psicológica (a actriz terá engordado mais de 25 quilos e passado meses na aldeia antes da rodagem).

Com essa performatividade, a câmara de Canijo também mudava, tornando-se testemunha do espectáculo do mundo, numa perspectiva quase baziniana do real. O plano-sequência e a câmara em lento movimento marcavam uma alteração profunda. O real já não parecia artificioso, mas sim cristalino, devolvendo uma espécie de naturalismo. Ponto alto deste cinema, concretizava-se uma cena marcante: um jantar, em que Lúcia (Anabela Moreira), a protagonista, obrigada a tornar-se noiva, irrompe numa altercação verbal violenta com a sua mãe (Márcia Breia), terminando no seu enclausuramento na pocilga familiar. A câmara, olhando para esta discussão, tornava-se um fiel repositório da entrega dos actores e da violência que deles emanava. Era uma cena que impressionava.

Ao quinto filme, com Sangue do Meu Sangue, Canijo chega a um estado mais puro do seu projecto. Não por acaso, o filme chegou a ser comparado a uma telenovela, não só no sentido melodramático do termo, mas também porque se centrava na ideia de retratar um quotidiano das personagens. Em plano de destaque, este filme mostrava várias refeições familiares, momento em que o “real” parecia aparecer em todo o seu esplendor. Essa capacidade de revelar um dia-a-dia banal decorria da transferência entre actores, realizador e o meio envolvente, tornando-se método estável, como comprovam os dados que o filme sugeriu e que deram mesmo origem ao documentário Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor (2011). Falamos aqui de transferência como relação de trabalho em que realizador e actrizes (e actores) estão continuamente em troca criativa. Este é um processo exigente, porque coloca o trabalho destas actrizes num despojamento da sua subjectividade em favor de um trabalho artístico. Elas expõem-se física e psicologicamente.

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A autoria do argumento de Fátima é atribuída a João Canijo com a participação de todas as actrizes — já como acontecera em Sangue do Meu Sangue Joana Linda

Neste contexto, Fátima surge como cúmulo destas experiências de troca. Tinha havido, nos últimos anos, uma aproximação ainda mais apurada a este modo de trabalho, sobretudo com É o Amor! (2013), mas também com Portugal: Um Dia de Cada Vez (2015). Em ambos, Anabela Moreira era a mediadora entre o cineasta e a “realidade”, efectuando-se permutas profusas entre realizador, actriz, outras personagens (sobretudo não-actores), e até a própria actriz-como-realizadora. Agora, com Fátima, o programa está oleado e automatizado. (Não por acaso, a autoria do argumento é, de novo, atribuída a João Canijo com a participação de todas as actrizes, já como acontecera em Sangue do Meu Sangue).

É fascinante, neste filme, a forma como Canijo utiliza, em simultâneo, onze actrizes, que, trabalhando da mesma forma, vão dando corpo a uma reminiscência do real. Este grupo é uma espécie de impressão de memórias instáveis sobre uma peregrinação a pé a Fátima. É daí que nasce um dos dados mais entusiasmantes do filme: este modo de construção torna evidente o total desinteresse de Canijo em relação às armas da ficção. Por isso dissemos que este era um filme num limbo. Pelo método de construção, pelo método — absolutamente decisivo — da montagem, este é também um filme sem história. E dizer isto a Canijo será, certamente, um dos maiores elogios. É como se, depois de tantos filmes (e de tantas tragédias gregas), Canijo se libertasse da narrativa para se concentrar em mostrar, apenas, as marcas contraditórias do real. Ainda assim podemos admitir que o filme celebra também a excelência das actrizes e da sua energia própria, criando estruturas de poder típicas da ficção, como parece óbvio na importância que Ana Maria (Rita Blanco) e Céu (Anabela Moreira) assumem na história e até na luta pelo protagonismo: narrativo, performático e pela encarnação do método canijiano.

Mas em Fátima permanecem vários sinais do cinema de Canijo (e, obviamente, da sua construção ficcional). A estrutura central do filme continua a ser a de um grupo pequeno (neste caso, pela primeira vez, não é uma família, no sentido estrito do termo; embora, no contexto em que estas mulheres se encontram, elas se sintam como uma família). Este grupo serve como metonímia de comportamentos mais abrangentes porque ele funciona como um sinal dos discursos culturais que circulam na sociedade: estas mulheres representam as minudências e contradições da sua comunidade (Vinhais, Trás-os-Montes, Portugal). Por isso mesmo, Fátima, apesar de ser um road movie, é, sobretudo, um filme sobre relações grupais (o facto da “família” ser grande ajuda, mais uma vez, ao retrato comunitário).

Partindo desse pressuposto, o caminho que fazem e as refeições que partilham são momentos de confronto, de personagens à deriva da sua própria vulnerabilidade. Acto maior deste filme, da sua construção, e da relação de dádiva entre actrizes e realizador, é a cena do banho: as personagens (ou as actrizes?) param, no decurso da sua peregrinação, num balneário público para um reconfortante duche. Forma literal de expor as imperfeições do tempo, agora feitas marcas corporais das actrizes, nessa cena Canijo é o intruso, olhando para dentro do buraco da fechadura. É, se quisermos, apenas a literarização de algo que já tinha acontecido antes. (Aliás, pensemos no corpo violado e exposto de tantas mulheres neste cinema: Dalila em Sapatos Pretos, Carla em Noite Escura, Lúcia em Mal Nascida, Ivete em Sangue do Meu Sangue. Por isso, esta cena de Fátima é como se fosse documentário sobre as actrizes de João Canijo, tantos anos depois: Rita Blanco, Anabela Moreira, Ana Bustorff, Teresa Madruga, Cleia Almeida, Márcia Breia...) Em Fátima, este corpo é brutalizado pelo caminho que estas mulheres se impõem percorrer e a estrada é um desafio que tanto as actrizes como as personagens são obrigadas a palmilhar. É desse dado narrativo que nasce a ideia de um olhar pelo quotidiano, tal como o percurso anterior de Canijo já entrevera.

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Joana Linda

Esse quotidiano, em Fátima, é também potenciado pelas regras que o cineasta delineara nos filmes anteriores: espaços exíguos, a câmara fechada nesses espaços, obrigando as personagens a romper o enquadramento. Essa asfixia — que era claustrofóbica em filmes anteriores — aqui promove a imersão das personagens no grupo, entidade que comanda a narrativa. Por isso mesmo, o espectador volta a ter que gerir todas as “ocorrências” que acontecem no plano: múltiplas personagens, à direita e à esquerda ou em primeiro plano e em fundo, e as suas conversas simultâneas. Daqui resulta uma cacofonia sonora, elemento central da estética canijiana, remetente às vozes das alternadeiras em Noite Escura e que tivera a sua concretização máxima em Sangue do Meu Sangue (sobretudo nas sequências familiares, dentro da casa de família).

Em Fátima, as vozes cruzam-se, misturam conversas ao redor de uma mesa de refeição, como as mesas de refeição de todos os outros filmes. (Sempre o espaço de refeição como momento catártico da relação de grupo). Essa utilização do som é mais um dado que concorre para uma ideia de quotidiano e de revelação das marcas do real, abstendo-se a câmara de se imiscuir nesse retrato. Atinge-se também, neste filme, uma espécie de (in)estética: as estradas nacionais, os nós rodoviários, os carros anónimos, os ginásios e albergues, em planos cuja construção parece menos vir de uma estilização que já foi cara ao realizador do que uma vontade de seguir o acto performático das suas personagens-atrizes.

A desdramatização de Fátima faz com que o filme se concentre nos pequenos gestos das suas personagens. A conversa imperfeita, da qual ouvimos apenas partes, a reza interior, ou mesmo o silêncio (na figura tutelar de Teresa Madruga e a “sua” professora, que faz a peregrinação para pagar a promessa de outra pessoa), fazem parte de fragmentos desta viagem. É certo que o filme provoca conflitos: aliás, eles seriam inevitáveis pelo convívio diário de um grupo. Aos poucos, há uma cisão: pequenas queixas, rumores, até que acontece um confronto directo entre Céu (Anabela Moreira) e Ti Isaura (Márcia Breia). Um confronto duro, que separará Céu das outras. (Apesar das diferenças melodramáticas, este conflito entre as duas mimetiza a citada cena de jantar, em Mal Nascida. Nessa mesma cena, e também em Fátima, Anabela Moreira como que “cospe” em Márcia Breia.) E Céu sai com um homem, elemento que desequilibra o grupo. Esta ruptura — ainda que desdramatizada — é o elemento de ambivalência, de choque do grupo com o devir da sua comunidade.

Em Fátima pouco interessa o fenómeno de Fátima. É certo que a viagem é pontuada por elementos ligados à fé, mas a sua importância religiosa é minimizada em relação à humanidade das personagens. No final do filme, fecha-se um círculo, mas isso é só um pretexto, arriscamos nós, para o início de outro. Vejam-se os finais dos outros filmes e da terrível consciência de que a vida continua (mesmo depois das maiores violências). A libertação da culpa estimulada pelo sacrifício da peregrinação — que a última cena, durante a procissão das velas, sugere, ao colocar as mulheres de novo em harmonia —, só pode ser, olhando para todos os filmes de João Canijo, uma ilusão temporária, antes de ser necessário enfrentar a dura realidade do que está por vir. É essa a lição de um cinema que, se está impregnado do seu contexto cultural, já há muito deixou de ser um cinema “sobre a portugalidade”. Fátima, como toda a obra de João Canijo, anuncia-nos: somos todos humanos, demasiado humanos.

Investigador, autor de tese de doutoramento sobre o cinema de João Canijo

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