A França, cantando e rindo

Se há lição de França é esta: acelera-se o colapso das famílias políticas tradicionais que têm governado a União e os seus principais Estados. Isso é imparável.

Um suspiro de alívio atravessou as chancelarias no domingo e houve governos europeus que, mesmo antes de Hollande o fazer, se precipitaram para apelar ao voto em Macron. No centro e até na esquerda ouvem-se vozes indignadas exigindo essa mesma entronização, castigando quem se atreva a sugerir que se deve perceber o risco para o vencer.

Tal precipitação partilha aliás um consenso que convém a ambos os candidatos da segunda volta das presidenciais francesas: como anunciam os cartazes de Le Pen, “Já não existe esquerda e direita mas sim patriotas ou globalistas”, e o mesmo repetem os macronistas da primeira como da última hora. É portanto neste terreno de bipolarização que ambos jogam. É-lhes confortável fingir que acabaram os programas e que agora é tudo ou nada, ou o isolamento ou o desvanecimento. É um sinal do estado da política francesa: “cantando e rindo, levados, levados, sim”, resolve-se o problema? É mesmo preciso um “som tremendo” e um “clamor sem fim” para que ninguém ouça nada.

Pergunto-me como podem alguns intelectuais colaborar nesta fraude, que é a verdadeira alavanca de Le Pen. Pacheco Pereira resumiu bem todo esse paradoxo: “(a Europa) vai andar feliz uma semana ou duas e depois tudo começa na mesma”. Ora, ficar tudo na mesma é a garantia de dois erros fatais: primeiro, perante a degradação institucional, persistir na solução (entregar o poder soberano a autoridades europeias) que garante o desastre (os regimes deixam de ser representativos); segundo, baixar ainda mais o nível dos protagonistas. Depois de Hollande é a vez de um político postiço cuja qualificação para ser Presidente é ter ganho uns milhões em piratarias financeiras.

De resto, entendamo-nos: não tem o leitor a sensação de déjà vu? Hollande dera o golpe garantindo que com ele a Europa se endireitaria, respeitaria as pessoas e as nações, corrigiria os tratados – e tudo em três semanas. Macron dá um passo mais: tudo se há-de resolver, mas não me pergunte como, basta um beatífico “referendo europeu na segunda volta”.

Mas se há lição de França é esta: acelera-se o colapso das famílias políticas tradicionais que têm governado a União e os seus principais Estados. Isso é imparável, não ocorre por causa de inimigos exteriores, não é por Putin e Trump apoiarem Le Pen, o que tem forte significado mas escasso impacto eleitoral, acontece por causa dos inimigos internos. Numa palavra, é o liberalismo económico que corrói a confiança. A continuar a forma de ser da União, a desunião é o resultado; a continuar a sua política, Le Pen tem uma chance e essa chance chama-se Macron, ou tudo recomeçar na mesma depois da festa.

Esse é o problema de Macron, é a sua realidade que o perturba. Não é um presidente que dê garantias. Ele é o nome da “Lei Macron” que facilitava despedimentos colectivos, aventuras bancárias e outras ignomínias e que desencadeou uma greve geral – não seria então de esperar que a esquerda desconfie dele?

Portanto, Macron tem esta escolha: tem de negociar e dar garantias à esquerda. Os que o querem entronizar, esperando depois um governo dos ressuscitados PS e Republicanos, desesperam por evitar esse comprometimento. Mas ele é a chave da segunda volta e é Macron quem deve tomar a iniciativa. Obrigando-o a isso, Mélenchon, que tem a maioria do voto jovem e de metade das grandes cidades, age estrategicamente em nome da esquerda. Ainda bem que houve alguém que não se acobardou nestas eleições francesas.

N.B.: – Apreciei a infamiazinha de Rangel, é mais forte do que ele. Venho só lembrar-lhe, a propósito da esquerda ser “moralmente” igual a Le Pen que, quando há trinta anos Le Pen pai veio a Portugal para incentivar a extrema-direita, só um punhado de militantes, entre os quais me incluí com honra, protestou cara a cara contra o que ele representava. Os moralistas rangelianos estavam de folga.

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