Crise levou a discurso "paternalista" e "punitivo" das instituições com os pobres

João Teixeira Lopes, um dos autores do livro As Classes Populares lançado ontem, sustenta que a crise foi aproveitada para transformar os pobres em classes assistidas, domesticadas.

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Manuel Roberto

O livro As classes Populares – A produção e a Reprodução da Desigualdade em Portugal foi lançado nesta segunda-feira e reúne os olhares de um economista (Francisco Louçã), um sociólogo (João Teixeira Lopes) e uma antropóloga (Lígia Ferro) sobre quem são e como vivem as classes populares, 43 anos depois da revolução de 1974. Neste entrevista, João Teixeira Lopes, que com Louçã é militante do Bloco de Esquerda, aponta a extrema vulnerabilidade à pobreza e o modo como os jovens cresceram a sentir a precariedade como algo normal. A crise, sustenta, transformou os pobres “em classes assistidas, muito vigiadas e sob a ameaça de punições constantes”.

Quais são actualmente os principais contextos de vida das classes populares, na sua relação com o trabalho, escola, território, linguagem?  
Dois terços da população enquadram-se naquilo a que podemos chamar as classes populares, isto é, [pessoas que têm] profissões subalternas, de execução, precarizadas, ligadas a rendimentos baixos. Nós temos hoje uma sociedade fortemente polarizada, em que as classes médias claramente empobreceram e se mostram instáveis. Aquela ideia de que nos transformamos num país de classe média, devido à educação ou a outros mecanismos de elevador social, não se verifica de todo. Pelo contrário, vemos, desde logo pela distribuição do rendimento e por aquilo que são as relações de trabalho e a forma como foram alteradas no período da troika, um forte empobrecimento de largas franjas da população. O que procurámos - para além do que foram os anos de chumbo da troika e o que foi esse empobrecimento, e o que foi, por exemplo, a aposta decisiva, estratégica, na precarização — foi mostrar e analisar os modos de vida destas populações. Analisámos, por exemplo, a forma como a restrição à mobilidade interfere nas suas possibilidades de arranjar emprego, naquilo que são seus horizontes de expectativa…

…mobilidade no sentido social ou geográfico?
No sentido geográfico. Verificámos, a partir de uma análise no terreno no Porto, como essa mobilidade tem vindo a decrescer, isto é, como estas classe populares estão mais confinadas ao bairro, à sociabilidade local e isso significa, entre outras coisas, menor capital social, isto é, menos contacto com outras pessoas que possam trazer repertórios diferentes, oportunidades diferentes.

A educação ainda tem o seu papel de elevador social?
É hoje claro que a educação aumentou muitíssimo no nosso país, mas é claro também que há mecanismos mais subliminares, mais oblíquos, de desigualdade social. Por exemplo, as vias de ensino ou as ditas escolas TEIP [Territórios Educativos de Intervenção Prioritária] têm a grande vantagem de oferecer aos alunos turmas mais pequenas ou recursos em termos de mediação — psicólogos, assistentes sociais…—, mas, ao mesmo tempo, têm como principal objectivo conter as indisciplinas ou as violências. E, nessa medida, aquelas escolas acabam por não ter o efeito transformador dos próprios territórios ou raramente têm.

São perpetuadoras da desigualdade?
São parênteses entre a família, o bairro e o mercado de trabalho. E não têm permitido alterar estruturalmente as oportunidades de emprego destes jovens. Mas ao nível da escolaridade temos também o fenómeno dos excluídos com diplomas longos, pessoas que, apesar de terem cursos superiores, não conseguem ter empregos estáveis nem bem pagos. Porque houve a nível social a chamada mobilidade estrutural, isto é, toda a sociedade tem mais qualificações, mas não há um reconhecimento, em termos de qualidade do trabalho, protecção ao trabalho, salário, desse aumento das qualificações. Isto serve evidentemente as empresas e os empregadores, porque têm pessoal mais qualificado, que, sob a espada do desemprego ou da precarização, não consegue ter condições salariais ou condições de trabalho melhores.

A que ponto é que os anos de chumbo da crise levaram a uma reconfiguração das classes populares?
A crise transformou-as em classes assistidas e muito mais vigiadas e sob o efeito de punições constantes. Na relação destas pessoas com as instituições sociais, a lógica que sobressai é de clara punição destes pobres. Atenção: as classes populares não se reduzem aos pobres, mas a pobreza é uma franja significativa das classes populares, em particular porque a pobreza é flutuante: as pessoas que hoje não são pobres mas que podem vir a sê-lo e as pessoas que já foram ou deixaram de o ser mas que podem voltar a sê-lo.

Portanto, a vulnerabilidade à pobreza em Portugal é altíssima. E as instituições de solidariedade social adoptam com estas pessoas um discurso altamente paternalista, moralizador e punitivo em relação aos maus pobres. E com isto acabam por subalternizar ainda mais estas pessoas, como se fossem umas crianças grandes, recebendo ralhetes, reprimendas, vendo o seu subsídio ser cortado se porventura um qualquer acto burocrático falhou. Esta normalização do pobre, do assistido, é um dos aspectos mais visíveis nas classes populares hoje em dia, esta visão punitiva que vai no sentido de manter os pobres dentro dos trilhos, domesticados.

A vulnerabilidade à pobreza está ligada à questão do emprego?
A questão do emprego é fundamental mas também está ligada, por exemplo, às mudanças familiares bruscas, um divórcio, por exemplo. Actualmente, os chamados quartis de rendimento estão muito próximos, isto é, o topo do rendimento descolou, os mais ricos estão mais ricos, o quartil seguinte está muito distante desses quartis mais ricos, e os três últimos, que representam cerca de 75% da população, aproximaram-se imenso. Formam uma base, a grande base da população, cujos rendimentos baixos e condições precárias se aproximam muito.

Que principais diferenças encontra entre as classes populares de hoje e o que eram em 1974?
As classes populares hoje têm maior protecção social, são mais escolarizadas, mas têm, a meu ver, as mesmas faltas de oportunidades de mobilidade social. Houve, no conjunto, uma inovação da sociedade em termos de nível de vida, de protecção social, mas, entre as classes sociais, as distâncias mantêm-se e até aumentaram. Apesar de as formas de expressão culturais e simbólicas serem muito diferentes.

Teremos hoje, como retrato-tipo das classes populares, alguém que trabalha num call center por oposição a alguém que trabalhava na agricultura ou numa fábrica?
Há uma diferença naquilo que são, por exemplo, as configurações culturais e simbólicas, claro que há. Mas muitos destes jovens que estão hoje nos empregos preçários do terciário ou até do quaternário vivem a mesma impossibilidade de sair do seu percurso precário e pauperizado. O que têm é outro tipo de expressão cultural, são muito mais cosmopolitas, abertos aos consumos culturais, em particular aqueles que não exigem grande dinheiro, às novas tecnologias... Houve uma descamponeização muito acelerada da sociedade portuguesa, hoje os espaços rurais não têm a agricultura como actividade principal, e isso significa que estilos de vida urbanóides, da economia digital, imateriais, de práticas individualistas de consumo, estão muito mais fortes nalgumas classes populares. Cujos jovens incorporam a ideia de que essa é a normalidade: um salário abaixo de mil euros, precário, com um prolongamento da sua existência em casa dos pais e sem conseguirem imaginar o futuro, é algo que não lhes causa particular angústia.

Todas estas questões não se conjugam no sentido de alimentar o inconformismo relativamente a esta precariedade generalizada?
Há uma grande margem de conformismo. E o consumo cultural serve para integrar e para fornecer essa base de conformismo. A ideia, hoje tão presente nos novos media, de que a sua voz é escutada, a sua participação desejada, contribuí para criar uma ilusão de que se é escutado e tido em conta. São mecanismos que facilitam o exercício da dominação. Até as formas de organização do trabalho que parecem não hierarquizadas (coworking, partilhar espaços, trabalho por objectivos em ambientes aparentemente descontraídos…) fornecem muitas vezes a ideia de que a pessoa se está a realizar pessoalmente ou de que tem pelo menos essa hipótese e de que não é oprimida. A exploração é neste caso muito mais subtil e menos à flor da pele, até porque, pela socialização, estes jovens vão incorporando este tipo de situação como aceitável, normal ou pelo menos sem alternativa.

Como é que isto se poderá redesenhar nas próximas largas décadas?
A certa altura, estes jovens vão cansar-se de ser jovens e de ser jovens em situação precária, subalterna, desqualificante. Há um ponto limite. Mas também sabemos que o sistema capitalista tem sido capaz de se adaptar e de criar metamorfoses que conseguem desmobilizar as situações de crítica ou mesmo de rebelião. É muito difícil fazer previsões neste momento. Mas parece-me que será impossível que um sistema se mantenha pelo menos inalterado com um nível tão grande de desigualdade. Até porque esta desigualdade cria imensos problemas ao próprio crescimento económico e ao próprio sistema capitalista.

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