Confortáveis na placidez de Abril

Somos hoje uma sociedade com um pé na idade adulta da política. E somos assim porque transportamos nas nossas vidas e experiências os 43 anos do 25 de Abril.

A cerimónia do 25 de Abril foi entediante, fossilizada na forma e conformista no conteúdo. Ainda bem. A ideologia oficial do optimismo é vagamente soporífera, a repetição de uma série de conquistas distantes promove o tédio e, apesar do discurso brilhante, emocionado e bem escrito (embora com os tiques radicalizantes do costume) de Joana Mortágua, do Bloco de Esquerda, a sessão de ontem na Assembleia da República merece um bilhete directo para o esquecimento. Ainda bem. Ainda bem que os protagonistas da sessão puderam dizer as amenidades mornas que disseram sem cair no ridículo ou nas malhas da mentira. Quando a política dispensa o espectáculo e dá de si uma imagem de remanso e de previsibilidade é porque está a correr bem. Portugal, para nossa sorte, é uma democracia “imperfeita”, como notou o Presidente-Rei no seu discurso, mas felizmente uma democracia estável que faz de Portugal um refúgio nesta Europa incerta e turbulenta.

Bem sabemos que faz falta a Portugal (e à Europa) o arrebatamento das grandes causas de outrora. Fazem-nos falta as palavras de ordem, os discursos inflamados ou as grandes marchas de rua – a vida também se faz com movimento e drama. Fazem-nos falta debates políticos mais intensos, ainda que Marcelo considere que os de hoje são “vigorosos”. Faz-nos falta a majestade de Mário Soares, a astúcia de Álvaro Cunhal, a humanidade de Mota Pinto ou a intuição de Sá Carneiro. Faz-nos falta o culto da liberdade no local de trabalho, no espaço público, nas escolas ou nas universidades, onde tantas vezes o medo da censura ou da perda do emprego levam as pessoas a silenciar opiniões ou a reprimir talentos. Faz-nos falta uma cultura de exigência e, principalmente, o sentimento de comunidade que penalize os que fogem aos impostos ou abusam dos recursos de todos nós.

Mas se as celebrações de Abril dão pouca liberdade ao inventário das suas falhas é porque, no geral, o país funciona. E porque pode discutir as suas injustiças, as suas desigualdades inaceitáveis, as ameaças que comprometem as expectativas das novas gerações sem ter de cair na tentação da demagogia ou no radicalismo. Sim, apesar de três ameaças de bancarrota, apesar dos desmandos dos banqueiros, das suspeitas de corrupção que pairam sobre ex-governantes, apesar da ineficácia da Justiça, da incapacidade de criar um país mais próspero e solidário, Portugal parece disposto a recomeçar sem pôr em causa a herança maior do 25 de Abril – uma democracia liberal. “Com quase nove séculos de História, não trocamos o certo pelo incerto”, notou Marcelo Rebelo de Sousa. “O nosso sistema de partidos é dos mais estáveis da Europa, não deixando espaço a riscos anti-sistémicos conhecidos noutras paragens”, acrescentou.

Ainda temos um parlamento onde, apesar de um discurso consensual, o discurso do Presidente não merece palmas a todas as bancadas (a apologia do “nacionalismo patriótico e universal” foi a faceta mais discutível da sua alocução). Mas, talvez mais do que em qualquer outro momento da II República (o Estado Novo não foi uma República), Portugal experimenta um momento raro de cultura de compromisso. Não é certamente obra dos supostos “brandos costumes”. É antes de mais consequência de um empenho da classe política, que começa a aprender - vale mais um governo imperfeito mas negociado do que um governo ortodoxo na ideologia mas errático e instável. Podemos detectar fragilidades no funcionamento da relação entre os blocos do parlamento, os debates roçam vezes demais a indigência ou o limiar do insulto, mas, no geral, não há razão para acharmos que estamos a recuar na democracia, como em tantos países da Europa.

Tudo acontece à custa dos portugueses, diz o Presidente-Rei Marcelo. Se fomos culpados por eleger governantes conspícuos, incompetentes e irresponsáveis, se continuamos a achar que a riqueza cai do céu ou da vontade dos políticos, também somos capazes de resistir estoicamente às consequências das nossas opções. Como lembrou Marcelo Rebelo de Sousa, a estabilização das finanças públicas à custa de severas políticas de austeridade é uma “vitória dos portugueses”. Seja por intuição, por alheamento ou por fé, assistimos a mudanças originais e profundas na política, com a extrema-esquerda a meter um dedo na governação, sem dramas nem convulsões. A tranquilidade com que tudo se processou é a razão principal para a estabilidade do actual Governo. Somos hoje uma sociedade com um pé na idade adulta da política.

E somos assim porque transportamos nas nossas vidas e experiências os 43 anos do 25 de Abril. A liberdade, a democracia e a Europa fizeram de Portugal uma sociedade mais culta, mais qualificada, mais aberta e cosmopolita, mais racional e exigente, mais tolerante e consciente dos seus limites e oportunidades. Não é um discurso floreado. Um país que aumenta quase 20 vezes a sua população com ensino superior em 40 anos, que cria um sistema educativo a passos largos do desempenho dos melhores da OCDE, um sistema nacional de saúde invejável, um protagonismo científico crescente é um país melhor e mais capaz.

Falta fazer muito. Na transparência, na cultura cívica, na exigência. Falta fazer ainda mais na transposição do valor social que acumulámos para a economia. Falta acabar com essa ideia que Portugal é um país para os instalados, para os funcionários públicos e os pensionistas privilegiados, que deixa à margem os desempregados e os jovens. Faz falta transformar um Estado centralizado de inspiração medieval num organismo moderno, que aplique o princípio da subsidiariedade tão caro aos países mais avançados, que seja capaz de dar respostas aos problemas onde eles existem em vez que alimentar essa crença estúpida que, nos tempos de hoje, uma grande cabeça em Lisboa pode governar bem de Tavira a Vinhais. Faz falta manter o alerta contra os “cantos de sereia e amanhãs ridentes, em que do caos sairá o paraíso”, como nota o Presidente.

A rotina modorrenta da celebração de Abril é uma dádiva nestes dias turbulentos. Ainda nos é possível discutir “amanhãs que cantam” num quadro parlamentar normal, sem tentações populistas, sem ameaças extremistas, sem termos a sensação de que as instituições democráticas se dissolvem para abrir portas à incerteza do caos. Por isso atraímos turistas, por isso, tarde ou cedo, o potencial das nossas universidades, as boas empresas, a excelência científica e técnica, o talento e qualificação dos mais jovens hão-de florir. Bem se sabe que a formulação deste desejo num Estado conservador e macrocéfalo, onde a Justiça é lenta, onde a desigualdade impera, onde a dívida dói, onde a pobreza persiste e a corrupção labora pode ser sintoma de um optimismo quase delirante. Mas a paz que vivemos neste mundo onde os “monstros aparecem todos os dias na televisão”, como Joana Mortágua lembrou num seu admirável discurso, é meio caminho para se chegar lá.

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