Os Gorillaz nos Estados Unidos do Apocalipse

Humanz é um álbum em que o desfile de convidados privilegia a soul e o hip-hop, ainda que sempre processados pelo apuradíssimo filtro pop de Damon Albarn.

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Albarn marca pontos na eficácia mas sacrifica algum do encantamento

Em entrevista à Billboard, Damon Albarn explicou que apagou todas as referências explícitas a Donald Trump do quinto álbum dos Gorillaz. Num cenário de festa pós-apocalíptica, em que Trump poderia muito bem ser o “ficcionado” agente do apocalipse (o disco foi composto antes do desfecho das eleições norte-americanas e a sombra da sua melena laranja era apenas um espectro terrorífico) colocado sobre o pano de fundo de um planeta a aguentar a sua humanidade por um fio, Humanz termina com outro provável sinal do dilúvio que anunciará o fim dos tempos (talvez em jeito de piada para consumo doméstico): Albarn e Noel Gallagher juntos num mesmo tema.

Lançado com uma pré-escuta à escala global de grande aparato — que exigia não apenas a instalação de uma aplicação da banda em smartphone como a deslocação a umas coordenadsa particulares em cada cidade para conseguir aceder ao disco –, Humanz chegou também com toda uma experiência de realidade aumentada em que se descortinava um pouco mais das quatro personagens criadas por Jamie Hewlett como intérpretes da banda capitaneada por Albarn. Numa das divisões da casa para onde se é transportado através da aplicação, ficamos a saber, por exemplo, da costela activista de Russell, que nos dá a ver um trailer de I Am Not Your Negro, documentário de Raoul Peck dedicado a um dos grandes pensadores afro-americanos, James Baldwin.

Não é por acaso que escolhemos Russell. Após os dois primeiros álbuns dos Gorillaz (Gorillaz e Demon Dayz), a criatura inventada por Albarn e Hewlett foi abandonando um lado mais lúdico e aproximando-se do veículo para o homem dos Blur espraiar todo o seu amor pela música negra norte-americana. É curioso, aliás, que nas mesmas declarações à Billboard justifique alguns dos convidados em Humanz como uma tentativa de impressionar a sua filha Missy, de 17 anos. Quase se poderia dizer que a personalidade musical dos Gorillaz (com a mesma idade de Missy) se foi transmutando ao mesmo tempo que a filha do cantor crescia. Basta olha para a capa de Humanz para perceber que esta bonecada já pouco tem de infantil.

Humanz é, por isso, um álbum em que o desfile de convidados privilegia claramente a soul e o hip-hop, ainda que sempre processados pelo apuradíssimo filtro pop de Damon Albarn. Desde o magnífico arranque com Ascension, com a debitação de Vince Staples (homem do radar Odd Future) sobre coro gospel/soul a tresandar aos OutKast de Speakerboxx/The Love Below, ao shot de adrenalina disparado pelos De La Soul em Momentz e à presença magnética de Kelela a impulsionar Submission para uma das melhores canções do disco, o mapa musical é sempre o de uns Estados Unidos pouco sintonizados com o estereotipado votante de Trump.

Apesar de ser difícil de resistir a Albarn em modo Prince em Andromeda (com D.R.A.M.) ou à balada espacial barroca Sex murder party, a Humanz falta transcender um nível geral claramente elevado. Mesmo se capaz de deslumbrar no tom de jazz lânguido quase Chet Baker de Busted and blue e na enviesada torch song cantada por um Benjamin Clementine que parece cantar como um fantasma com um século de pós em cima ao vocalizar Halleluah Money, parecemos colocados “apenas” diante de outro óptimo disco de Albarn. A que falta, no entanto, o golpe de asa final ou a capitalização do inesperado. Alguém ainda se lembra como era devastadoramente bela a surpresa de ouvir Ibrahim Ferrer cantar Latin Simone nos primeiros tempos dos Gorillaz?

Ao escolher a especialização, como habitualmente acontece, Albarn marca pontos na eficácia mas sacrifica algum do encantamento.

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