A França é outro país. É cedo para dizer qual

Macron permite dizer, por agora, que o centro aguentou.

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A França nunca faz as coisas por menos. De uma assentada, varreu da segunda volta das presidenciais os candidatos dos dois grandes partidos do sistema. Em 2002, no dia 21 de Abril, os eleitores tinham varrido os socialistas, deixando Lionel Jospin a algumas décimas de Le Pen, o pai. Desta vez, decidiram por um duplo 21 de Abril. O candidato socialista, Benoît Hamon, desapareceu em combate, com um score inimaginável, deixando o campo aberto para a esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon. A derrota da direita gaullista, ainda que um pouco menos humilhante, é inédita na V da República, fundada por De Gaulle em 1958 para tirar a França da instabilidade política e acabar com a guerra da Argélia. François Fillon também vinha da ala mais conservadora de Os Republicanos, depois de derrotar Alain Juppé, mas não lhe serviu de nada. Vai agora morrer às mãos de Nicolas Sarkozy, que deixou de estar interessado na segunda volta para já estar a pensar nas legislativas de Junho, que funcionaram até aqui como uma espécie de terceira volta das presidenciais. O problema é que na França da V República não há “grandes coligações” mas apenas pequenas ou médias coabitações. Mitterrand-Chirac (1986-1988); Mitterrand-Balladur (1993-1995); Chirac-Jospin (1997-2002). Não há uma cultura de consenso, como na Alemanha, mas uma cultura de confronto.

A questão seguinte é saber até que ponto a disciplina republicana que fez eleger Chirac em 2002, com mais de 80% dos votos, vai funcionar desta vez. No domingo, apenas os dois candidatos dos partidos centrais da política francesa, o PSF e Os Republicanos, apelaram imediatamente ao voto em Emmanuel Macron. Foi penoso mas altamente significativo ver Mélenchon retorcer-se para evitar reconhecer a vitória de Macron e, mais ainda, recusar-se a indicar um sentido de voto contra Marine Le Pen. Na França, na primeira volta escolhe-se, na segunda, elimina-se. Foi o que fizeram Hamon e Fillon. Os resultados provam também que o sistema bipolar se transformou num sistema de quatro partidos quase iguais entre si. E esta é também uma novidade, que fez a França acordar para um mundo político radicalmente diferente.

A noite foi, naturalmente, de Macron e de Le Pen. A candidata da extrema-direita pode suspirar de alívio. Foi visível nos últimos dias da campanha que a Frente Nacional já tinha perdido a dinâmica inicial e começava a marcar passo. Porventura, batendo no tecto de vidro que, por enquanto, ainda a impede de ser um partido igual aos outros. Macron já falou como Presidente, apelando a todos os cidadãos, a todos os “patriotas” para derrotar sem margem para dúvida o nacionalismo. Antes das eleições, lembrou várias vezes a célebre frase de despedida de François Mitterrand perante o Parlamento Europeu: “O nacionalismo é a guerra”. As sondagens, que afinal estavam certíssimas, dão-lhe uma vitória folgada sobre Le Pen, mas longe dos 82% de Chirac.

A realidade política mudou radicalmente na França. Por enquanto a Europa venceu, assim como a democracia. Mas as provas que Macron ainda tem de ultrapassar nos próximos tempos são difíceis. No domingo, insistiu que a sua candidatura não é para regressar ao passado, nem nas ideias nem nas caras que as representam. Quer que o seu movimento, En Marche!, que ainda não é um partido, consiga um resultado forte nas legislativas de Junho. A questão é saber o que acontecerá ao PS, provavelmente sem tempo para se recompor até às legislativas e com as facas desembainhadas para o ajuste de contas que resulta inapelavelmente deste enorme desastre. O partido que Mitterrand refundou no Congresso de Epinay (1971), abrindo as portas para o “programa comum” da esquerda, incluindo os comunistas de George Marchais, acabou. Como alguns comentadores referiram ao longo da noite eleitoral, foram os “frondeurs” aqueles que fizeram a vida negra a Hollande e a Manuel Valls, os grandes derrotados. Hamon foi o seu rosto e falhou rotundamente. O seu programa alimentava-se das belas ideias de uma sociedade “pós-moderna”, interessante para uma elite de esquerda minoritária mas bastante arredada dos reais problemas da maioria dos franceses.

Com Mélenchon a fazer as despesas do radicalismo, os franceses preferiram o original em vez da cópia. Manuel Valls terá tempo para tentar “recompor” o centro-esquerda para as legislativas? Dificilmente. Macron pode governar a França com uma maioria parlamentar de direita? Pode, mas não será a mesma coisa. Os poderes enormes do Presidente francês, decalcados da imagem solitária do general De Gaulle, ficam necessariamente reduzidos se tiver de coabitar com um governo de maioria contrária. As incógnitas continuam, como sempre acontece em tempo de rupturas. Mas muita gente suspirou de alívio no domingo à noite, em França e na Europa, com a vitória de Macron, o mais jovem candidato ao Eliseu com reais hipóteses de ganhar, o menos experimentado, mas também aquele que ousou arriscar tudo para mudar a política francesa. Fillon reclamou-se da herança gaullista. Sarkozy não o tinha feito em 2007, quando ganhou as presidenciais. Macron permite dizer, por agora, que o centro aguentou. 

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