“Quem disser que há democracia na Venezuela está fora da realidade”

Fernando Henrique Cardoso entende que o momento é propício para um "diálogo mais intenso" na América Latina.

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Fernando Henrique Cardoso Enric Vives Rubio

Gostávamos de o ouvir sobre o que se está a passar agora na América Latina, nomeadamente os últimos desenvolvimentos na região: viragens à direita, a crise infindável na Venezuela. Tem acompanhado?

Tenho. Conheço bastante a Venezuela, e conheci bem Hugo Chávez, que era uma pessoa inteligente e que tinha uma visão. Agora a situação é muito mais complicada porque o Maduro não tem as mesmas características pessoais do Chávez para exercer uma liderança. Houve na Venezuela uma divisão muito grande da sociedade, e o que segura a situação é que há uma fusão do Governo com os militares. Então é uma situação delicada, porque mesmo que não tenha apoio na sociedade tem apoio no Estado. E de fora, o que se pode fazer? Não muita coisa: pode-se protestar, reclamar.

O Governo brasileiro tem feito isso, por exemplo na Organização de Estados Americanos.

O Governo brasileiro, até à Presidente Dilma, estava paralisado por uma razão ideológico-emocional: nunca nem Lula nem Dilma diziam nada contra a Venezuela, porque tinham uma relação de partido com a Venezuela. Isso acabou. O actual Governo do Brasil declara que é preciso mudar a situação na Venezuela, que tem que se fazer eleição, que é o que todo o mundo quer. Eu era favorável e disse que achava que o Brasil devia conversar com Cuba e a Colômbia porque era a única maneira de tentar ter influência efectiva na Venezuela. Mas [a eleição de]Donald Trump atrapalhou isso tudo, porque Cuba – que estava num caminho bastante razoável com relação à América Latina – ficou isolada, perdeu a oportunidade de ser a interlocutora de um grupo maior de países. A situação na Venezuela é dramática, com repercussão no Brasil (por causa da imigração para lá e porque não pagam aos empresários brasileiros com investimentos no país). A Venezuela está a ser esmagada economicamente e pela incapacidade do Governo de obter apoio outro que não seja na bala.

Acredita que seja possível uma solução para a crise que não seja de violência extrema?

Tenho dúvidas. A situação é difícil, vai desgastar, desgastar, desgastar até que tem que fazer algum acordo. Agora tiraram ao Henrique Capriles a possibilidade de ser candidato, chegaram ao limite máximo. Não é mais democracia na Venezuela. Quem disser que há democracia na Venezuela está fora da realidade. Não é a mesma situação na Bolívia, por exemplo. Eu sou contra essa coisa da reeleição permanente, mas Evo Morales [que tenciona concorrer a um quarto mandato consecutivo, alterando outra vez a Constituição], não fez as loucuras que foram feitas na Venezuela.

Mas a região está a mexer: em vários países, governos de esquerda estão a ser afastados por governos de direita…

Essa ideia agora de dizer que a esquerda perdeu… Esquerda e direita querem dizer o quê, nesse contexto? É complicado. Veja-se o Uruguai: era o Mujica e agora é o Tabaré Vásquez. Mas algo mudou negativamente no Uruguai? Não. Muda na política, e é importante que haja essa alteração. Por exemplo, o Chile, país onde eu vivi vários anos. Já ganhou a esquerda, já ganhou o que eles chamam la derecha, e provavelmente vai ganhar de novo. Muda alguma coisa, mas não se vai mexer com a liberdade, não vai ninguém para a cadeia, não se vai atropelar a actividade económica. O que é que vai acontecer na América Latina? Sabe Deus! Agora a América Latina atravessa um momento em que ela precisa de repensar-se. O mundo está globalizado: tem a China, tem os Estados Unidos, tem a Rússia, tem a Europa e tem o Médio Oriente, que são os grandes blocos complicados. Agora está a mudar porque veio o Trump e disse que vai voltar a História para trás, agora é America First. Fica tudo a balançar. E a América Latina está fora disso.

Até poderia ser bom, mas o isolacionismo americano tem sempre um efeito no Brasil.

O que eu digo é que o Brasil precisa de voltar a ter um diálogo mais intenso com a América Latina. Não para sair do mundo mas para estar no mundo.

Esse foi um objectivo da política externa do Brasil dos últimos anos, ser o porta-voz da região, mas não aconteceu.

Não, não foi, o Brasil perdeu espaço na América Latina: o Chávez entrou com uma cunha e paralisou o Lula. Mas isso acabou. O Brasil tem de se repensar. Nós temos de nos sentir, outra vez, mais acomodados à nossa vizinhança, que é a melhor maneira, e a mais proveitosa, de ter voz no mundo. Nós temos uma região. E parece que o mundo pós Trump vai reorganizar-se com blocos regionais, e nós temos de ter uma política para isso. O que se vai fazer com o Reino Unido que vai sair da União Europeia? E com a própria Europa? E o Mercosul, não vai ser revitalizado? E o México, que foi abandonado pelos norte-americanos com essa história do muro? O Brasil tem que se juntar ao México. Quer dizer, há espaço para a política. Mas depende da acção dos governos nacionais, depende do Brasil resolver os seus problemas.

E como é que neste cenário internacional olha para a situação da Europa neste momento?

Temos de ver o que vai acontecer nas eleições dos grandes blocos. O que vai acontecer na eleição da França? É difícil saber, eu acho que a Marine Le Pen perde, mas não sei. E quem ganha? Os antigos partidos perderam força, já não têm a hegemonia que tiveram. Na Alemanha ainda têm, não se sabe muito claramente quem vai ganhar: os democratas-cristãos ou os sociais-democratas. Pelas voltas que a História deu, a Merkel passou a ser a voz do Ocidente. Vai ganhar? É possível mas não é garantido. Então a Europa é um ponto de interrogação. Veja a Espanha: criou partidos novos, o Podemos, mas bem ou mal o PP e o PSOE têm alguma vigência…

O PSOE menos, os partidos socialistas europeus estão com problemas.

É verdade. Veja o caso da Inglaterra…

Inglaterra, Espanha, França, já para não falar da Grécia. Acha que é um problema da esquerda?

Não, o problema é maior. Há uma crise da democracia liberal representativa, em toda a parte do mundo. Há uma dissociação entre os representantes e os representados. Isso mexe com os partidos. Mas ainda não se inventou um sistema democrático sem partidos.

Há o Trump…

O Trump vai por fora, mas não é partido. E é um risco, que pode haver em todos esses países. Ou os partidos se reinventam e abraçam causas contemporâneas, e o povo sente isso, ou ficam nessa confusão, com o risco de aparecerem regimes autoritários até personalistas, tipo Trump, dando a volta por cima. Os partidos que nós temos, socialista, conservador, liberal, trabalhista, o que seja, são produto da sociedade industrial que nasceu no século XIX, se fortaleceu no século XX e acabou no século XXI. A sociedade agora é outra, é a sociedade da comunicação, da inteligência artificial. E como é que esta sociedade se vai se organizar, se é que vai?

E não pode ser só o caso de a crise financeira e económica, que na verdade é que afectou o mundo todo, ter dado um valente abanão nas democracias ocidentais? Não pode ser passageiro?

Deu um abanão em tudo e na esquerda ocidental também. Na crise de 29 houve uma coisa semelhante, e deu direita. Aqui não sei o que vai dar. Porque não tem mais os partidos correspondentes ao modo como nós pensávamos a sociedade no passado. Isso é complicado em termos de acção partidária, política, e de reconectar o mundo político ao mundo social. É disso que se trata. Reinventar uma narrativa. Como político, você fica aflito. Como intelectual, você acha interessante.

Uma dificuldade acrescida é que os representantes dessa nova sociedade do século XXI ficam em casa no dia das eleições. As pessoas que vão votar ainda são as do modelo do século XX, e a política faz-se para quem vota.

No Brasil não temos tanto esse problema porque a participação é muito grande, as pessoas votam. Mas quando a maioria está desconectada, o sistema político é que vai mal, não é a maioria. Não há uma fórmula mágica para resolver a questão. Eu gosto muito de uma expressão de um sociólogo francês chamado [Pascal] Perrineau. Ele escreveu: “Il y en a une globalization qui est malheureuse, l’autre est heureuse”. E é verdade: quem votou nos Estados Unidos foram as vítimas da globalização desafortunada. Mas a globalização não é uma ideologia, é uma mudança no modo de organização da economia e da sociedade. Não vai parar, porque a força que move é outra. É outro mundo. E como você vai querer acabar com a força desse mundo? Vocês são felizes em Portugal, porque não estão nessa crise. Já estiveram, mas resolveram dentro do sistema. Têm um Governo que é de um lado, o Presidente é do outro e os dois se entendem.

Acha que resolvemos bem?

Acho. Nas circunstâncias do mundo, claro que sim. Claro que Portugal tem de crescer mais, mas resolveram bem o quanto é possível resolver uma crise que é maior, que vai estar aí e não vai desaparecer.

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