Este pequeno país à beira-mar implantado

Falta aos cientistas exercer uma influência normativa mais directa, para explicar e exemplificar como actuar.

São poucos os dias do calendário que não têm significado ou um evento associado. É de tal ordem comum que o facto de a 22 de Abril se celebrar o Dia Internacional do Planeta Terra fica no esquecimento da maioria da população. E esta comemoração existe para nos consciencializar a cuidar da “Casa” que nos fornece bens e serviços. Não quer isto dizer que os media não tragam frequentes notícias alarmantes sobre os crimes ambientais que degradam o estado do nosso planeta. Esses crimes existem, mas têm muito menos impacto do que os outros, os económicos e políticos, que nos corroem o bolso e revoltam a alma.

O “estado” da Terra não tira o sono ao comum dos cidadãos. E, no entanto, milhares de espécies arbóreas estão em risco de extinção; em dez anos perderam-se, a nível global, 10% de habitats selvagens, ou seja, sem intervenção humana; Portugal está em quarto lugar entre os países europeus com mais espécies em risco de extinção; a Reserva Ecológica Nacional (REN) está cada vez mais adulterada.

Quer isto dizer que há uma completa insensibilidade dos portugueses perante os problemas ambientais que afectam o nosso planeta? Não, e os estudos levados a cabo pela socióloga Luisa Schmidt, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, mostram que os portugueses estão cada vez mais informados e, consequentemente, preocupados com os problemas ambientais.

Se a preocupação existe, falha a mudança de atitude. De acordo com o psicólogo Sander van der Linden, da Universidade de Princeton (EUA), os nossos julgamentos e actuações estão directamente relacionados com fortes reacções emocionais que se formam devido a experiências negativas. São elas que nos levam a tomar decisões, avaliar os riscos a incorrer. Como as diferentes alterações ambientais não podem ser “vistas” ou “ouvidas”, o sistema de alarme afectivo responsável pela percepção do risco imediato não é activado, até por ser um tema impessoal, ligado a um lugar, a outras populações, ao mesmo tempo a ocorrer num futuro “distante”. Até agora, como cientistas, temos tido capacidade para disponibilizar o conhecimento científico, em prol de uma sociedade mais informada. Falta-nos o passo seguinte: exercer uma influência normativa, mais directa, para explicar e exemplificar como actuar.

Talvez seja esta falta normativa que tenha levado a um movimento de ténue revolta perante a notícia da delimitação da REN nos concelhos de Alcácer do Sal e de Grândola, permitindo a construção no Litoral Alentejano. Esta delimitação viola o próprio conceito da Rede Ecológica Nacional: garantir processos e mecanismos ecológicos fundamentais ao funcionamento do território. A redução da REN nestes dois concelhos, confinando-a às margens dos cursos de água e a uma faixa costeira, vai aumentar a sensibilidade dos ecossistemas costeiros. Estes terrenos muito porosos, maioritariamente formados por arenitos e areias, responsáveis pela recarga dos aquíferos, têm permitido a sustentabilidade das populações que ali habitam. Em Tróia, por exemplo, o aquífero superficial, que oscila ritmicamente com as marés, resulta, em parte, da injecção de água de aquíferos muito profundos (com milhões de anos) e da acumulação de águas pluviais. Abastece todo o ecossistema e permite água potável todo o ano. Na Comporta, a grande riqueza de muitos cursos de água depende da acumulação de água superficial, que formam turfeiras e pauis. Com a pressão urbanística e agrícola ficam assim zonas susceptíveis de poluição, de excesso de carga e de exploração.

Criada pelo Decreto-Lei n.º 321/83, de 5 de Julho, a Reserva Ecológica Nacional foi lançada com o intuito de integrar as ”áreas indispensáveis à estabilidade ecológica do meio e à utilização racional dos recursos naturais, tendo em vista o correcto ordenamento do território”. No fundo, o grande objectivo era contribuir para a conectividade e a coerência ecológica das áreas nucleares de conservação da natureza, ao abrigo dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado português. Nos últimos 30 anos, a REN tem sido a "salvaguarda" de ciclos naturais fundamentais e um leque diversificado de interfaces de elevada sensibilidade e riqueza ecológica. Têm sido estas áreas que têm evitado ou reduzido o efeito de cheias, deslizamentos, secas, fogos, e tem mantido áreas do território com elevada riqueza de biodiversidade.

A delapidação da REN tem sido gradual, liderada não só por governantes, mas por grupos económicos que fazem pressão para alterar e aligeirar a legislação. A construção de planos directores municipais mais convenientes e “amigos” de grupos económicos de elevado poder não tem sido acompanhada por mecanismos de sustentabilidade ambiental. Os compromissos internacionais de conservação da natureza a que Portugal está vinculado acabam por ficar relativizados e têm levado ao depauperamento de recursos de rara beleza. Primeiro foi o Algarve. Segue-se o Alentejo.

Mas a culpa não é só dos governantes e do poder económico. Tem havido falhas por parte dos responsáveis ligados à conservação da natureza, aos ambientalistas e aos ecólogos. Nunca foram discutidas as vantagens e desvantagens da REN ao longo de todo o território, nunca se analisou ou discutiu alguma falta de equidade. Era apenas uma lei proibitiva e não proactiva. A discussão devia ter estado no terreno, para se avaliar os prós e os contras, envolver a população, explicar, trabalhar e implementar estratégias de desenvolvimento socioeconómico, consistente com os recursos que esta estrutura nacional pode proporcionar. Falhou a informação, a capacidade de construção colectiva e o papel normativo que leva a propostas de acção concretas com as quais as pessoas se sentem identificadas e impelidas a lutar. A comunicação de ciência tem de saber fazer a ponte entre a ciência e a vida real. Já não basta informar, há que exemplificar e mostrar como actuar.

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