Vacinação infantil: uma abordagem bioética

É importante que a comunidade tenha consciência dos ganhos em saúde que resultam da vacinação.

O surgimento, em Portugal, de mais casos de sarampo desde o início do ano (21 casos confirmados até 19 de Abril) do que o verificado no total dos últimos dez anos lançou o debate sobre a obrigatoriedade, ou não, da vacinação infantil como medida de saúde pública.

O nosso Programa Nacional de Vacinação (PNV), nascido em 1965, é universal, voluntário e gratuito para o utilizador. Apesar de existir uma forte recomendação e adesão à vacinação na população portuguesa, a sua recusa é admissível.

O atual debate manifesta de forma notória o conflito entre princípios de bioética que estão interiorizados nos nossos valores civilizacionais. Por um lado, o princípio da autonomia, que consubstancia o direito à autodeterminação do ser humano, e se manifesta primordialmente através da necessidade do consentimento do paciente na tomada de decisão sobre as intervenções em saúde que lhe são aplicadas. Por outro lado, o princípio da beneficência, que consubstancia um dever de prestação dos melhores cuidados de saúde possíveis, em benefício dos pacientes. No contexto de políticas de saúde públicas de vacinação, a beneficência deve ser vista em termos coletivos, já que o que está em causa é o objetivo de alcançar a imunidade de todo um grupo face a determinadas doenças.

Sendo a possibilidade de recusa de intervenções de saúde uma liberdade individual que concretiza o princípio ético fundamental da autonomia, o exercício desta liberdade individual pode colidir com interesses dos demais membros da comunidade quando estejam em causa intervenções em saúde com impacto para os restantes membros dessa comunidade, como é o caso de medidas preventivas de doenças.

Neste caso, a decisão de consentimento ou recusa não se enquadra apenas na dimensão da relação médico-paciente, mas sim na relação do utente com as autoridades de saúde e com a comunidade. Portanto, o exercício da autonomia pelo sujeito deve ser encarado, não apenas como um mero ato de liberdade individual, mas também com a correspondente responsabilidade perante o grupo.

Outro aspeto fundamental é que o consentimento deve ser informado. E aí os profissionais de saúde desempenham um papel muito importante.

No que diz respeito à vacinação, os casos de recusa do consentimento assentam essencialmente em receios ou visões enviesadas que provocam uma inversão da perceção do risco de doenças. Ou seja, a ideia de que a própria vacinação acarreta riscos para a saúde. É, por isso, importante que a comunidade tenha consciência dos ganhos em saúde que resultam da vacinação.

No que diz respeito ao PNV, é de salientar que a sua aplicação permitiu a erradicação e o controlo de doenças que antes de 1965 eram responsáveis por graves problemas de saúde pública. Refira-se, a título de exemplo, que segundo dados da DGS, nos nove anos que precederam a introdução do PNV, 1956-1965, o número total de mortes em Portugal provocadas pela doença do tétano foi 2625, de tosse convulsa foi 873, de difteria foi 1457 e de poliomielite foi 316. Estes números são comparáveis com os resultados obtidos entre 2003-2012, em que a mortalidade provocada pelo tétano foi reduzida para 21, pela tosse convulsa para quatro e não ocorreram mortes por difteria e por poliomielite.

O debate a que assistimos deverá ter bem presente a dimensão ética inerente às medidas de saúde pública que são propostas, na perspetiva do resultado que podem trazer em termos de beneficência e utilidade para a comunidade, e da liberdade dos cidadãos com a correlativa responsabilidade pelas suas decisões.

A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

 

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