Escravatura e o que também nos deveria indignar hoje

Em que patamar de igualdade de oportunidades estamos e o que queremos, quatro décadas depois do 25 de Abril? É necessária uma discriminação positiva assente na cor da pele entre nós?

A invocação num antigo entreposto negreiro no Senegal pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa do início da abolição da escravatura no Portugal metropolitano no século XVIII levou, e bem, à publicação na imprensa de diversos textos, com contraditório assegurado, sobre o uso da escravatura e dos seus formatos de algum modo sucedâneos por parte de Portugal.

Sou daqueles a quem o tema suscita este tipo de reacção: a prática obviamente choca, vista pelos olhos do nosso tempo; leio-a no seu contexto histórico, o que significa querer conhecer os factos, mas não me sentir pessoalmente responsável pelo passado; procuro algum tipo de aprendizagem com ela, no que normalmente desemboca num confinamento moral assinalável sobre que possa ser a condição humana, seja ela da cor que a pintem (havia brancos que eram traficantes de escravos, havia negros caçadores e vendedores de homens, havia escravidão entre diferentes povos de distintos continentes que não o europeu, etc.).

E simpatizo naturalmente com a tentação de evitar qualquer versão oficializada da história, seja em que sentido for. A expansão portuguesa, também pela relevância e dimensão do processo, tem sido um território fértil para alguns pequenos e grandes mitos de diversas tonalidades, muitos deles felizmente desconstruídos nas últimas décadas, pela revisão da historiografia recebida que cada geração de investigadores tem o direito e o dever de empreender. Com um colega, há poucos dias e sobre o tema, comentávamos por exemplo a realidade afinal de um “império de resorts balneares” em contraponto com uma mitologia imperial, há muito afastada, alicerçada numa suposta presença e domínio efectivo de vastas terras ultramarinas.

O que fazer então hoje com essa herança histórica da prática da escravatura? – perguntam-se diversos autores, reclamando mais debate público.

Não estou contudo seguro que seja esse o debate mais necessário. A escravatura legitimava-se também num critério de superioridade civilizacional do europeu branco perante o negro que surgia necessariamente menorizado, quase incapaz. É certo que os direitos hoje proíbem-no e as mentalidades bem-pensantes rejeitam-no, mas que igualdade somos capazes de assegurar, na verdade, entre europeus brancos e os outros – os não brancos ou, por exemplo, também os imigrantes pouco qualificados?

Qual o sucesso, real e no nosso tempo, dos nossos magníficos direitos e avanços nesse campo, como esses egrégios ditames pombalinos?

Ou, em termos simples e crus, como ignorar os exércitos de negros ocupados nos trabalhos indiferenciados, mal pagos, na limpeza nocturna dos escritórios e dos centros comerciais ou nas tarefas mais duras e mais fungíveis na construção civil? E como ignorar quão poucos são os jovens negros da periferia de Lisboa que chegam à universidade? E sabemos porquê? Quantos negros são comentadores na televisão? Como ignorar a sua ausência entre os quadros directivos nas empresas, na administração pública? Quantos juízes? Quantos políticos negros em Portugal?

Em que patamar de igualdade de oportunidades estamos e o que queremos, quatro décadas depois do 25 de Abril? É necessária uma discriminação positiva assente na cor da pele entre nós? Até que ponto uma cor e os seus contornos associados condicionam um futuro no Portugal de 2017? O que está a funcionar e o que não está nos sistemas públicos que pretendem reequilibrar as condições de partida entre todos? Isso é um mito ou existe de facto? Onde acaba o espaço da responsabilidade pessoal e começa a responsabilidade colectiva? Que consequências tem essa repartição para uma visão distributiva da comunidade? Até que ponto o argumento de “base multicultural” é respeitável e a partir de que momento não pode funcionar?

Talvez este fosse também um bom debate e ele próprio honrasse a nossa história e o nosso presente.

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