Não há claustrofobia, mas já se respirou melhor

O PS encara cada manifestação de independência como uma imperdoável traição ao partido e ao país.

Há dez dias escrevi um texto a criticar Paulo Rangel pela forma como estava a querer estender a expressão “claustrofobia democrática”, que marcou o consulado de José Sócrates, ao Governo de António Costa. São tempos incomparáveis, e não devemos perder a noção das proporções. Mas tal não significa que o Governo e o Partido Socialista não exibam regularmente o velho tique de donos do regime democrático, imortalizado tanto no “quem se mete com o PS, leva”, de Jorge Coelho, como no “Ó senhor guarda, desapareça!”, de Mário Soares. O PS sempre foi assim e não é agora que vai mudar. Claustrofobia propriamente dita não há, mas é verdade que se vive uma época pouco arejada no que diz respeito à relação do Governo com entidades independentes como o Banco de Portugal, o Conselho das Finanças Públicas, a CRESAP ou o próprio – e antes tão adorado – Tribunal Constitucional, via Entidade das Contas e dos Financiamentos Políticos (ECFP).

Quem se julga dono do regime tem muita dificuldade em deixar de falar à patrão. E o próprio Luís Patrão, actual responsável pelas contas do Partido Socialista, deu provas disso quando foi confrontado com o facto de o PS ter estourado espectacularmente o orçamento das suas eleições primárias. Coisa pouca: o PS previa que elas custassem 328 mil euros e custaram acima de 1,65 milhões. Cinco vezes mais. Um desvio digno de uma PPP socrática, digamos assim. E Patrão respondeu às críticas do relatório da ECFP ao melhor estilo animal feroz, aprendido com o velho amigo da Covilhã: “A troika foi-se embora e, pelo que sei, não se mudou para a Entidade das Contas. Até parece que a ECFP não gostou do sucesso e da dimensão que tiveram as primárias.” O comentário não é apenas ridículo. Ele mostra um absoluto desprezo pelo escrutínio democrático e pelo dinheiro dos contribuintes.

É um primeiro exemplo de desoxigenação democrática. Mas há mais, como o boicote que o Governo anda a fazer ao Banco de Portugal e ao Conselho das Finanças Públicas (CFP). Para além das pilhas de declarações desagradáveis de deputados e ministros em relação a Carlos Costa e a Teodora Cardoso, há uma guerra de bastidores que tem impedido as duas instituições de funcionar regularmente. Os membros do CFP são nomeados pelo Conselho de Ministros, após proposta conjunta do Tribunal de Contas e do Banco de Portugal – ora, o Governo chumbou os dois nomes que lhe foram apresentados, entre os quais o da italiana Teresa Ter-Minassian, uma antiga directora do FMI que liderou o resgate português de 1983. E quais foram as justificações para o chumbo? Zero. É boicote puro e duro. Aconteceu com a equipa de Teodora Cardoso, como está a acontecer com a equipa de Carlos Costa. O Governo também tem sucessivamente chumbado os nomes que lhe são apresentados pelo governador para suprir a saída de vários administradores. Para quê? Para mostrar quem manda, claro.

Último exemplo: CRESAP. Tem muitos defeitos, mas é uma tentativa de impor alguma transparência e mérito nos concursos de altos cargos públicos. Este Governo não gosta da CRESAP. Só que também não tem coragem de acabar com ela. Donde, especializou-se no recurso trafulha ao regime de substituição, que é eternizado para fugir aos concursos. Isto não só não é sério, como demonstra que o PS é um herdeiro aristocrata de Luís XIV – entre ele e o Estado não há distinção. E, por isso, encara cada manifestação de independência como uma imperdoável traição ao partido e ao país.

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