Pagamos, mas não mandamos?

Com um banco que não é de Portugal, sendo antes uma sucursal do BCE, com as regras de Frankfurt e de Bruxelas, o país é nesta área o equivalente a uma colónia.

O secretário de Estado adjunto e das Finanças, Mourinho Félix, confrontou, em nome da dignidade do país, o presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, com as suas infames declarações sobre “copos e mulheres”. No entanto, o mesmo responsável político nacional tem sido um dos rostos da indigna submissão governamental ao princípio europeu do “pagam, mas não mandam”, que tem estado em vigor na reestruturação do nosso sistema bancário, tendo declarado, em entrevista à RTP, face à alternativa sensata da nacionalização do Novo Banco: “Seria difícil de justificar perante toda a gente, diria eu, que o Estado poderia ter uma tal participação no sector financeiro.”

É preciso desde já denunciar que esta “toda a gente” não é fundamentalmente a gente deste país, mas sim quem hoje comanda a banca neste país: a Comissão Europeia, em particular a sua todo-poderosa Direcção-Geral da Concorrência, e o Banco Central Europeu (BCE), autênticos comités executivos supranacionais para a gestão dos assuntos regulatórios e monetários do capital financeiro nesta zona. As instituições europeias têm usado o país como cobaia de mal sucedidas experiências de resolução bancária. A sua lógica é clara: nacionalizar, de forma tão opaca quanto possível, os prejuízos do sector bancário e internacionalizar a sua propriedade. Desta forma, impede-se o reforço da propriedade pública, que naturalmente adviria da canalização, já efectivada, de milhares de milhões de euros de recursos públicos para a banca.

A submissão a esta lógica acabará por deixar como único banco nacional, porque público, uma CGD obrigada, pelas instituições europeias, a continuar a comportar-se como se fosse um banco privado. Isto implica, por exemplo, ser sangrada pelo pagamento de juros usurários por emissões obrigacionistas dispensáveis. A submissão a esta lógica faz agora com que o Novo Banco, ou seja, cerca de 15% do sector, esteja a ser entregue de graça a um fundo especulativo. O fundo público de resolução, depois de ter canalizado 4,9 mil milhões de euros, fica reduzido a 25% de um banco onde não tem voz e onde a norte-americana Lone Star pontifica com 75%, tendo apenas de investir aí mil milhões de euros. Num negócio ruinoso para a nossa gente, o fundo público fica com o essencial do risco de desvalorização de uma carteira de activos do Novo Banco, que, se afectar os seus rácios de capital, implica a injecção nos próximos oito anos de até 3,89 mil milhões de euros. Pagamos, mas não mandamos. Sim, pagamos, porque é claro, pelos juros baixos e pelos prazos cada vez mais prolongados de reembolso, que a responsabilidade da banca pelos empréstimos do Estado ao tal fundo público é mais nominal do que real.

Entretanto, uma fatia relevante do sistema bancário nacional, com toda a preciosa informação associada ao crédito que foi concedido e à sua situação, será gerido numa lógica de ganhos especulativos de curto prazo, com particular ênfase para o imobiliário e com sacrifício da ligação paciente às necessidades do tecido produtivo nacional. Pior do que a banca privada nacional, que resultou das privatizações e que tão eficaz se revelou na destruição de capital e na geração de endividamento externo, será a banca privada estrangeira, deixando o país ainda mais exposto à instabilidade, como a experiência dos países periféricos com este padrão de controlo tem atestado.

A alternativa a este estado de coisas passa por reconhecer as especificidades de um sector estratégico com poderes exorbitantes. Em primeiro lugar, o poder de criar e de destruir moeda através do crédito, um verdadeiro bem público numa economia monetária de produção orientada para o investimento, mas um bem que pode transformar-se num mal em mãos tão gananciosas quanto pouco escrupulosas. Em segundo lugar, o poder de lidar com o futuro, ou seja, com a incerteza, concentrando muita da melhor informação disponível sobre a actividade económica geral, cujo andamento passa pelas decisões tomadas nos bancos. Em terceiro lugar, o poder de não poder verdadeiramente falir, dado o caos que tal gera num sector que lida com a confiança, porque lida com a moeda e com o futuro. Juntos, estes poderes fazem com que a sacrossanta concorrência de mercado seja na banca uma fonte de falhas ou de ficções constantes.

A concorrência gerada pelas estruturas neoliberais criadas nas últimas três décadas é indissociável do aumento do número e da violência das crises bancárias à escala internacional, cujos custos são e serão sempre socializados, dada a natureza do sector. Esta situação contrasta com o período entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 80, quando as crises bancárias eram bem menos frequentes, devido à chamada "repressão financeira": banca pública com lógica pública, controlos de capitais e regulamentação precisamente desconfiada da concorrência.

A concorrência é uma fonte de ficções, porque as crises evidenciam as especificidades deste sector, mostrando que é em última instância o poder público, e não os mercados, que tem de o gerir, a começar pelo banco dos bancos, ou seja, pelo banco central, que lhes cede a liquidez de que depende a sua sobrevivência. A questão é então se o poder público gere o sector para beneficio público ou de privados. Com um banco que não é de Portugal, sendo antes uma sucursal do BCE, com as regras de Frankfurt e de Bruxelas, o país é nesta área o equivalente a uma colónia. Uma colónia serve para experiências e para ameaças: ou pagam e não mandam, ou liquida-se o banco, gerando o caos. Lembremos como a Grécia foi tratada.

Quem aceita este enquadramento pode confrontar Dijsselbloem no plano dos símbolos e pouco mais. Quem quiser gerir o crédito com uma lógica pública, ao serviço das necessidades do tecido produtivo nacional, tem de recusar a lógica política da UE, uma instituição que, se não existisse, teria de ser inventada pelos bancos do centro do sistema mundial.

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